terça-feira, outubro 30, 2007

Bárbara

"Não havia dúvida, porém, quanto ao que exigia: todo o ouro e toda a prata da cidade e entrega de todos os escravos de sangue bárbaro. 'Que é que nos deixa, então?' - perguntou o emissário. 'A alma' - respondeu ele".



Fel de bronze e ferro, cerra os olhos dos homens; lhes escancara a carne.

Intempestiva e inexorável,
da terra aos confins
leva seus lírios negros

E espolia-nos a todos. Flamejante o seu cabelo
em ruínas faz os olhares do mundo.

Passa com vento, chuva, fogo, sangue; e cheiro e caminhar de fêmea.

Indefesos, lhe chamamos selvagem. Que sitia e incendeia, vence nossas torres e bastiões. Carnificina-nos.

Leva seu ouro e sua prata, seus espólios manchados de gozo. Impõe um tributo silencioso, de respeito e gratidão ignóbil. Porque nos deixa vivos.

Sim, lhe somos gratos. Pois o único momento em que a Terra - essa coisa inanimada e burra - sabe-se viva é quando passa a devastação, e os campos só nos têm amizade quando lhes é ceifado o grão, com a foice sedenta de pescoços. Da mesma forma, nos vemos vivos, quase imortais, depois que ela se vai. É que da sua boca em disparada pinga o nosso sangue, espalhando-se por todos os cantos, e assim fazemos parte de tudo o que há.

domingo, outubro 21, 2007

Bandolim

Toca assim o bandolim; sei-me só.

Andança por uma tarde escurecida, valsa sem par, ourives da solidão. Toca assim o bandolim. Atesta-me a vastidão da planície deserta, faz-me ventar e ecoar num vale; dá-me frio.

Quem disse que às cordas importam as notas que vibram? A música é o espelho da vida: toda beleza é acidental, e solitária. Quando toca assim o bandolim, isolar-se é apenas aceitar.

domingo, outubro 14, 2007

Se quiseres, fica

Imprecisão e sobressaltos. Eterno perguntar-se. Para aqueles devotam seus olhares aos detalhes; cujos olhares involuntariamente atentos percebem significâncias tão notáveis quanto quase inexistentes; que ouvem gritos no maior dos silêncios; para esses está garantida uma vida de incertezas. Pois se é fato que nos detalhes se escondem grandes verdades, não é menos certo que a sutileza é a mãe da sombra sem dono, da palavra sem boca, das certezas sem pé. O caminho desses é o do quase saber. Não conseguir olhar direto pro sol. Gente assim é como se só enxergasse o mundo com o rabo de olho.

É no cantinho de nossa humana visão que se escondem o nada e também os grandes tesouros. É como se nada de realmente belo pudesse ser visto e encarado de frente. As coisas que realmente valem a pena não se nos revelam, são teimosas e brincalhonas. Que mundos de possibilidades se abrem num simples toque entre duas pessoas! Os olhares são quase rudes perto da insinuação contida no comportamento de mãos quando se encontram, ou mesmo quando se soltam. É como se tudo na gente falasse abertamente, tagarela, por apenas um milésimo de segundo. "Ouvi isso mesmo?" Ah, quantas promessas perdem-se por aí, largadas no asfalto, porque não foram ouvidas essas vozes sem peso, sem ar? E quantas outras tornam-se uma ridícula decepção, pois eram apenas impressões, soltas, excesso e lixo de realidade?

Nunca dorme direito, quem observa o mundo desse jeito, com lentes de aumento. Está sempre indo do riso ao choro; num dia garimpa um diamante; noutro, colhe orgulho ferido. Mas nunca, nunca abre mão do seu modo peculiar de ver e viver. Não, não esquece. Essa pessoa não esquece aquele olhar subitamente desviado no domingo, ou aquela inexplicável momentânea timidez na despedida daquele sábado de verão. Não esquece jamais a mão que largou a sua, quem sabe a dizer: "se quiseres, fica a segurar-me, que estarei feliz".

quarta-feira, outubro 10, 2007

Uma carta

Rodolfo,

Por favor, me leia com atenção, e me dê a sua opinião.

Acabo de dar vazão a uma faceta muito sinistra minha. Enviei - trêmulo de prazer - um e-mail muito cruel e injusto para a Clarissa. Não acredito em metade do que escrevi e, principalmente, não acredito em absoluto no tom que dei às palavras. Foi um puro e simples exercício de crueldade. E também um exercício de autoflagelação.

Sim, porque, enquanto escrevia, desejava uma resposta tão cruel quanto, ou então a decepção total (que foi o que acabou acontecendo). O que leva um ser humano a deleitar-se com essas coisas, especialmente em se tratando da pessoa mais importante e amada da vida dele? Que mistério assustador. É aterrorizante saber que eu posso sim ser um monstro, um açougueiro psicopata; porque foi essa a sensação que tive; um eremita emocional, agressivo, de olhos injetados, e com uma boa dose de tragédia. Há uma literatice nisso tudo, quem sabe? Um desejo de superar a mediocridade e arenosidade da vida com situações dramáticas? É difícil para alguém como eu - cujo endereço é a lua - se deparar com o fato de que a vida não é um romance, e sim uma responsabilidade. Assim, fria e imperdoável. A vida verdadeira não dá margem a sentir pena de si mesmo. É uma governanta severa e boa, que quer o dever de casa feito antes de permitir que as crianças sentem à mesa da felicidade.

Será isso?

Estupefactamente,

Alexandre

segunda-feira, outubro 08, 2007

Bruna,

Minha resposta a você foi muito incompleta e, por isso, insincera. Vale completá-la aqui mesmo, por que não?

Isso aqui tem o poder absurdo de me acalmar o espírito. Você não tem noção da disparidade de ânimo causada, do "antes/depois" que foram alguns textos desse blog pra mim. Nem todos. Talvez eu os conte nos dedos.

Me permitindo algumas reflexões viajantes: talvez ter um blog sirva pra mesma coisa que ter um cachorro; ou gritar no Grand Canyon. Sei lá.

Não sou sentimentalista com a literatura não, e pra mim mágica não existe. Mas é inegável que esse negócio aqui às vezes faz os momentos de extrema solidão serem suportáveis. Solidão de todos os tipos: solidão por opção, por teimosia, por desespero. Passando por essa porta, é possível que evaporem, virem éter, um cheiro incômodo, uma poeira debaixo do tapete. Dá pra entender?

domingo, outubro 07, 2007

A navalha e a carne

Não, a lâmina que corta e a carne que sofre não são diferentes. Não é que elas não saibam uma da outra, e - céus - não atribuam crueldade ao pobre fio da lâmina que violenta a inocência da pele rasgada. Porque a navalha sabe bem o que é a dor, e já foi carne, mole, quente e cheia de sangue a espirrar; num golpe de vento, endureceu, afiou-se e refletiu - metálica - o céu tempestuoso. E a carne, pobre despedaçada e mutilada, sabe bem o que é ferir, pois já foi tão fria e tenaz quanto qualquer aço; caiu a chuva, amoleceu, encheu-se de fluidos e nervos que gritam. O sangue sempre a escorrer pela calçada, nunca novidade para ninguém. E ainda assim a navalha corta e a carne esperneia. Serão tão estúpidas a ponto de esquecerem tudo o que já sofreram? O universo é uma crueldade só, fazer coisas que não sabem o que são... E se houvesse uma navalha de carne, e uma carne de frio metal? Por que a insistência eterna num carrossel sangrento e oco, repetitivo, emburrecedor? Onde estão as raposas desse mundo, e a experiência que faz a prudência? Vergonha! A carne devia ter vergonha do sangue que verte, assim como a navalha se embaraça de sua ponta pungente. Pede perdão pelos músculos partidos, desgraçada! Recolhe teus restos mutilados, e ai de ti se deixares o cheiro da tua pusilanimidade no ar! Limpa o palco, que os ares já mudam, e logo será a tua vez de cortar e desculpar-se. E tu, navalha infeliz? Arranca-te do rosto essa expressão de horror e culpa, como se nada soubesses do mundo! Enxuga o sangue que já coagula em tuas falsas faces de facínora e corre. Corre, sem olhar para os lados, e aproveita a tua metalicidade enquanto é tempo. Andem! Saiam ambas da minha frente, que me enojam!

Roda viva

O recomeço - todos sabem - é uma bênção. Esse clichê é que nem aquele móvel empoeiradíssimo, mas não sem o seu charme cinzento de quem já esteve limpo há uns cinco séculos. Tem gente que é alérgico a clichês; eu não. Espirro com poeiras e ácaros da vida real, não da vida metafórica.

Mas não é nem de recomeço que vim falar aqui. Eu sei na pele que a bendita linguagem e entendimento humanos inventaram a sensação de frescor de um reinício, da nova chance, do ano novo. Todos aqueles com idade acima de 1 ano conhecem bem a sensação. É uma concessão para jogar tudo embaixo do tapete e começar de novo. Começar a sujar e emporcalhar tudo de novo, os leitõeszinhos que somos (ou que podemos ser, pra não soar muito como um velho ranzinza que bate com a bengala em tudo o que é humano).

Mas pois. O fato é que a idéia de recomeço implica na idéia de circularidade. Como todos sabemos, círculos são redondos, circulares. Pois bem. Se tudo o que começa termina, por que o que o se renova não deveria também terminar? Acho que ninguém nunca pensou nisso, senão o Houaiss mostraria o termo "refim" entre a palavra "refilo" e o antepositivo "refin".

Baboseira, eu sei. Mas, cá pra nós, esse blog não é todo uma grande besteira, um "oco palavrório"?

Continuemos pois, a lamentação. Uma das muitas ironias dessa vida é que, ao mesmo tempo em que nossa visão cíclica das coisas nos dá alento, ela também nos afronta e exaspera, com a recorrente repetição de certas decepções e zombarias do destino. Porque, assim como uma moeda atirada dificilmente cairá em pé, a roda viva do mundo também tem a péssima mania de não ter lá muito equilíbrio em suas finas e atrofiadas pernas. O que está bem está suscetível ao desastre; o que está mal geralmente está tão cansado que prefere o ano novo chegar e trazer seus doces e suas pílulas milagrosas, como um Papai Noel doidão, vendedor de ácido lisérgico.

E assim sempre. Esse negócio de linearidade histórica acho que é um grande balela pra pensador vender livro. No fundo a gente ainda vê a existência como os antigos, e o tempo é uma grande bola de futebol, um bambolê, uma pizza giratória, um cachorro correndo atrás do próprio rabo, e quantas outras comparações circulares você quiser. Dizem as provas de física dos vestibulares: "desconsidere a resistência do vento e o atrito". Assim é a vida, nada pára o seu rodopio entediante, estonteante e - por que não? - às vezes inebriante. Giremos em torno de nossos próprios eixos, resignados, portanto. Ou isso, ou nada.

terça-feira, outubro 02, 2007

Paixão de ficção

O grande problema dos personagens fascinantes é que eles não existem. As almas estonteantes, as inteligências admiráveis e ofegantes só nos fazem lamentar que a vida seja tão imprevisível. Pois na ficção tudo está no script. Lorde Henry Wotton nunca é pego de surpresa nas suas palestras corruptoras, pois já sabe exatamente todas as reações de seus inventados interlocutores. O Lobo Larsen não tem de lidar com ponderações inopinadas do "hóspede" de sua embarcação, pois tanto um como outro são frutos de uma mente em devaneio criativo.

Não acredito na Clarice Lispector quando ela diz que não sabe o rumo que suas histórias vão tomar quando começa a escrever. Sim, elas vão se desenvolvendo à medida em que as palavras são pintadas, mas isso não significa surpresa, por mais que a mente sonhadora do escritor goste de pensar que o personagem tem vida própria.

Não, a Hermínia do Lobo da Estepe é irresistível e suas palavras são mágicas só porque ela é mimada pelo autor. A amante tcheca de Franz - Sofia? Seu nome agora me escapa - é indomável pois todos os outros personagens do Kundera já foram domados por ele. Brás Cubas é tão irônico consigo mesmo porque não existe, e sua própria morte é uma farsa. E não acho que eu poderia conhecer um jagunço com a poesia simples de Riobaldo.

Poderia continuar com uma infinidade de personagens cujo espírito e dom da palavra são estelares. São todos uma grande gargalhada frente à mediocridade humana. Porque afinal, convenhamos, somos todos mentes medianas, com delírios de genialidade. Mesmo que a genialidade não seja nossa, e sim uma admiração pelo brilhantismo alheio, ainda assim ela é delirante.

Isso tudo pode ser muito triste. Porque jamais - e isso reconheço que é puro pessimismo - irei entrar em um bar alemão com pensamentos suicidas e encontrar uma formosa e misteriosa moça que, com sua perspicácia irretocável, irá soprar a cor de volta à minha vida. Nunca nunca uma mulher terá uma resposta na ponta da língua para cada pergunta minha, a ponto de me impressionar o espírito a ferro em brasa.

Ou será que essa mulher existe? Ela seria a perdição de qualquer homem na face da Terra. Ela e tantas outras personagens femininas da vasta imaginação humana. Nunca conheci ninguém de carne e osso que as superasse em mistério e brilhantismo. Já perdi a conta de mulheres que descobri apaixonantes com um simples cruzar de olhos, mas não é a mesma coisa. Nunca nenhuma delas me fez temer pela perdição da minha própria alma. Nem acho que eu jamais terei esse efeito sobre ninguém. Efeito esse que um mero espantalho descrito em caracteres impressos pode conseguir com um estalar de dedos do seu teatrinho inventado.

Ora, paciência. Enquanto isso vamos sonhando com o roçar nos nossos joelhos da saia de uma Hermínia ao levantar-se; com a beleza indizível de uma Helena; com a radiante sensibilidade aprisionada e incompreendida de mil putas solitárias e desprezadas da nossa literatura. É só o que podemos fazer, esticar os braços para alcançá-las e só encontrar o frio papel impresso nas gráficas desse mundo afora.

quinta-feira, setembro 27, 2007

Bazar

Felicidade não se compra. Vende-se.

sábado, setembro 22, 2007

Um retrato cretino da esperança

Quando ela saiu, fez questão de levar a chave e deixá-lo trancado em casa. Disse para esperá-la, que voltava, e que trazia pão fresquinho e carinho. Que esperasse. Depois, bateu na casa de cada vizinho e convenceu a todos que deveriam sair dali. Que era melhor, e que não se preocupassem, que ela chamava a empresa de demolição. Derrubou-se todo sinal de moradia num raio de quilômetros, até onde a vista dele alcançava. Dedetizou a região; mataram-se as pragas, e junto com elas simpáticas formigas, grilos, gatos e marias-sem-vergonha. Depois, calou o vento e os pássaros. Em seguida, mandou apagar o sol, e desintegrar a lua.

Voltou um tempo depois, e parou em frente à casa trancada. Sem ar que vibrasse as suas palavras, teve que passar um bilhete por baixo da porta. Avisava que demoraria mais um pouco, que era um imprevisto, que esperasse. Despedia-se com um beijo, cheio de promessas. Depois, fez queimar o bilhete, e a si mesma.

No bar às 21h

A Juliana disse que todo mundo está à procura da sua outra metade.

É mesmo? E o que você fez? Deu uma de homem sensível, né garanhão?

Não, fui bem sincero com ela. Que não existe essa história de metade faltando.

Ah, disse, foi?

Sim. Isso é balela. O que falta não chega a 40%.

Da série "Suspiros"

“Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão.”

Chico Buarque – As Vitrines


Efeita-se de mundos. Mentira ou ingenuidade, limitar seus adornos às gavetas da penteadeira, ao estojo de maquiagem. Até um sopro de vento e um vôo de pássaro enfeitam a mulher que intriga. Ela nasceu a mais filha das filhas da Terra. É tudo dela; se passa é o chão que a embeleza, e não menos o próprio ar que a perfuma.

A mulher que intriga, que enreda, que emaranha-se em nossos pensamentos. Todos nós sabemos dela como se sabe de uma memória antiga. Aquelas carimbadas dentro do estômago. Lembramos de tudo, mas não sabemos descrever um centímetro dela. Porque a mulher que intriga é assim mesmo: meio invisível pra quem olha, mas inevitável para quem sente. Inconfundível no seu próprio mistério.

Essas mulheres nem sabem de si mesmas. Nasceram; é tudo o que sabem. Não fazem idéia de que o mundo é seu. Quando se vêem no espelho, sorriem desconfiadas e incrédulas. Quando tentam lhes contar a sua ascendência divina, desentendem-se. Pensam em brincos e lábios. Nunca se apaixonam por si mesmas.

E há uma delas a cada esquina. Sempre uma surpresa, encontramos onde nunca esperamos. E ela logo passa. Está sempre caminhando, a mulher que intriga. Sempre passando, indo, a gente nunca sabe pra onde. Geralmente de cabelos soltos, pois estes guardam mais segredos.

O que a gente faz com elas? Não sabemos, não sabemos. Acho que não fazemos é nada. Nem sei se elas nos fazem bem ou mal. Até hoje o máximo que me aconteceu foi terem roubados minutos e minutos do meu dia a olhar pra elas.

sexta-feira, agosto 24, 2007

Bate outra vez

Edinho achou aquilo uma coincidência pra lá de mórbida. Morreria de infarto antes dos trinta, como sempre brincara com os amigos e familiares. Não que acreditasse realmente nisso; gostava era de ouvir os "cruzes!" e acompanhar as persignações, e saber-se querido. Pois agora era como se seu coração dissesse que ele nunca gostara nem um pouco daquela brincadeira de mau gosto. Onde já se viu, alardear por aí que vou te deixar na mão? E tome dor nos braços! Esse tipo de piadinha só porque sabe que eu jamais te abandonaria, né? Então toma aquele desespero!

Estava lá Edinho, sozinho em sua poltrona favorita, de onde gostava de assistir aos filmes do Sergio Leone. "Esses italianos fizeram bangue-bangue melhor que os americanos, vê se pode". Vê se pode. Começara a sentir-se mal justamente na hora do duelo final entre o Bom, o Mau e o Feio. Aquela tensão toda, os olhos impávidos do Clint Eastwood, os olhos suados do Eli Wallach, os olhos de raposa do Lee Van Cleef. E os olhos pequenos e arfantes do Edinho. Close up nesses olhos, meu povo, como o diretor italiano fazia. O Edinho está agonizante.

Sim, se você me perguntar, eu admito que a vida do Edinho passou voando diante dos seus olhos. Mas ele não foi tão sortudo quanto nosso amigo Brás Cubas, que devia ter um karma importante o suficiente para que uma entidade primordial lhe mostrasse tudo o que houve, há e haverá com o Homem. Viu três ou quatro esporros que levara quando criança, uns cinqüenta gols do Fluminense, e intensas, muitas e variadas cenas de amor com sua esposa. De algumas ele nem participara. Estranho.

Estava sozinho em casa, leitor, então pare de querer chamar a atenção de alguém para socorrer nosso pobre amigo. A mulher está na casa de um amigo, estudando. Os filhos, sabe Deus onde. Pepe, o cachorro, não levanta nem para comer. A coisa está complicada.

E aqui a história pode tomar dois rumos diferentes. Eu posso aproveitar a morte - tão querida para as nossas literatices - e descrever os momentos finais do tricolor fã de faroeste. Quem sabe não saem até algumas reflexões de valor disso tudo? O Edinho é, afinal, um ser humano bastante singular em suas idéias e filosofias.

Mas o que eu acho - e o Edinho concordaria comigo - é que a história vai pegar uma carona no balão da fantasia, e salvar o nosso amigo. Pois basta alguns pequenos golpes do meu dedo nesse teclado para eu avisar ao Edinho que, na verdade, o que houve foi que o coração dele não está falhando. Só resolveu parar de trabalhar de graça. Não, esquece essa história de tecido muscular liso ou outras babosieras biológicas. Se quisesse viver, Edinho teria que se esforçar. Literalmente. Greve do miocárdio.

"Bate outra vez / Com esperanças o meu coração". Não pôde deixar de lembrar do Cartola, quando se viu salvo. Implicara sempre com ele, por parecer muito com o Ray Charles. Mas agora sentia uma espécie de gratidão. Daquelas sem sentido, pois o mangueirense de nariz de couve-flor nada teve a ver com isso. O ser humano não tem mesmo muita razão no sangue.

O que diabos estava acontecendo? Edinho sabia sim se surpreender com as coisas, e refletiu por alguns minutos. Logo desistiu. "Se eu for pensar muito na vida / Morro cedo, amor". Foi assaltado pelos versos do Nelson Cavaquinho. Ah, desse ele gostava mais. Parecia o Mestre Yoda, e o Mestre Yoda é muito mais legal que o Ray Charles.

Edinho foi vivendo muito bem com o seu coração assalariado, sindicalizado, CLTista. Recebia em ATP's, queima de energia, contração muscular voluntária; só não podia se aposentar. É claro que nem tudo era um mar de rosas. Todo mundo sabe que o Edinho sempre foi sedentário. E por causa disso teve princípio de infarto umas quinze vezes nas primeiras semanas. Sem contar que era difícil bater o coração e fazer outras tarefas ao mesmo tempo; quando se distraía, quase tinha um piripaque. Mas coordenar a intensidade e freqüência das sístoles e diástoles, isso que era o mais difícil. Os ajustes tinham que ser feitos a cada batida, de acordo com as necessidades emocionais ou físicas do corpo. Sexo, era complicado. Ficou uns quatro meses sem encostar na mulher. E ela, estudava na casa do amigo.

Mas aos poucos tudo foi se acertando. "O ser humano. Sensacional", ele dizia. Adaptou-se com perfeição, e gostava de dizer que era o melhor controlador de freqüência cardíaca do mundo. Virou um maratonista coronariano. Assoviava e chupava manga. Conhecia seu corpo como o roteiro de "Era uma vez no oeste": de cor e salteado. Aos poucos, foi tomando as rédeas do sistema imunológico, da digestão, do processamento de informação do cérebro. Doenças, não as tinha. Afinal, quando é que um corpo humano e seus linfócitos vão cercar bactérias e vírus com táticas militares? Edinho aposentara o autopiloto, e estava bem melhor assim. Já escreveram que o nariz serve para que cada um olhe para o seu próprio. Fundamental na constituição do ser humano, uma porta pra si mesmo. Pro Edinho isso era fichinha. O Edinho era-se todo transparente.

Mas aí um dia ele morreu. Bateu com o carro, coitado.

segunda-feira, agosto 20, 2007

O silêncio revelado

Calo porque ela cala
Ela cala porque calo
E assim ninguém pisa
Nos calos de ninguém

Mais uma da série "diálogos possíveis"

- Oi.

- Oi.

- ...

- ...

[beijos e beijos] [E beijos]

[E não há mais nada a dizer]

Cassino

Há novidades no ar. O mundo tem girado que nem um caça-níqueis enlouquecido, procurando com leve desespero o "jackpot!". Ou ao menos umas frutinhas divertidas. Há o clima de antecipação, e a atmosfera de pertencimento que ele traz. No fundo, no fundo, a gente sabe toda santa carta que o crupiê vai nos distruibuir. A gente só perde o jogo porque... Bem, porque...

Fico com as reticências, pois não estou com humor para ser pretensioso.

quarta-feira, agosto 08, 2007

Para viver melhor

Eu exagero as verdades que me são inconvenientes, para que se tornem mentiras que me são ofensivas. Assim, vivo nobre e tranqüilamente, e concentro minha consciência em sonhos românticos de humanidade.

Dêem-me adjetivos

Dia desses acordei e percebi tudo o que tu esperavas de mim. Hoje sou capaz de acordar vestindo a máscara do teu sonho da noite que passou. Digo o que quiseres, da forma que quiseres, tu pedindo ou não. Eu adivinho a tua chuva. Sou o calo que dói quando o tempo vira.

Cuidado comigo. Pois não tenho propósito a não ser saber de tudo. Sou automático, leio-te sem nem pensar. Faço tudo isso com um sorriso impresso nos olhos. Não me chamo cruel nem cínico. Sou o bruxo dos teus sonhos. A peste que virou entranhas. Sou aquele que vais amar, e que vai partir teu coração. De antemão. Pago adiantado tuas contas de dor e alegria.

segunda-feira, julho 30, 2007

Interatividade

Insira o segredo da vida aqui: ______________________.

Precisando de mais linhas, paciência.

Recorte IV

- Eu acho que quero escrever o melhor poema do universo.

- Grande novidade. Todo mundo que faz alguma coisa gostaria que fizesse a melhor coisa.

- Quem escreve, não. Minha cara, escrever é passar despercebido, esconder-se, essas coisas. Ser grande, isso é para astronautas, apresentadores de tevê. E boxeadores. Todo boxeador quer ser o melhor.

- Ahn... [Bem devagar, assente com a cabeça. Ela é mestra na condescendência com amigos.]

- É esquisito, o escrever sem endereço. Não se quer impressionar, ganhar um tapinha nas costas sequer. Apenas arranjar um lugar pra tinta que transborda por baixo das unhas. Mas esses momentos são raros.

- Pelo visto, agora não é um desses momentos né?

- Não, quero mandar um recado. Dizer que estou aqui.

- Pra quem?

- Não sei. Por isso que tem que ser o melhor do mundo. Pra ter mais chance de alcançar o destinatário.

segunda-feira, julho 23, 2007

Ciclo

E tome pá de cal na tristeza.

Com o tempo, fertiliza a terra, sobe sobe, nasce uma plantinha de cor de nome difícil. Dá floreszinhas choronas. Chega o pass'rinho e leva o pólen pra longe. Faz espirrar o violonista alérgico. Espalha uma pequena epidemia. Morrem três ou quatro. Nascem outros cinco.

E tome pá de cal em tudo isso.

Brincando

Pois tive vontade de começar um texto com "Caramba!". Mas comecei com "Pois". Irônica, a onipresença da palavra.

domingo, julho 22, 2007

Minha

Hoje eu ri de todos os amantes. Os tolos, os infantis, os sisudos. Desprezei declarações comedidas e "eu te amo"s gritados do fundo dos pulmões. Lamentei, com aquela velha sensação de superioridade, todas aquelas pessoas invejáveis em sua ventura.

Porque elas não sabem o que eu sinto.

Gargalhei de todos os poetas, cantando suas musas e seus sabores. Com um sorriso condescendente, deixei os brutos com suas cartinhas mal escritas. Não fui preconceituoso: ignorei os aplausos aos grandes escritores. Todos eles, tão infelizes.

Porque não sabem o que eu sinto.

Pra que largar tanto amor ao vento? Deixar se perderem, indefesas no lado externo do peito, essas crianças que nunca crescem? Por que, meu Deus, sujar quilos de papel com preciosidades inomináveis? Diz-se, declara-se, perde-se, gasta-se. Não, eles não sabem o que fazer com seus amores.

Hoje o mundo está sujo de tantas frases que perderam seu sentido de existir. Céus, juntemos as palavras de carinho numa grande montanha de lixo! São todas usadas e recicladas, ama-se em ciclos ecológicos. Diz-se, e logo se perde o que deu origem ao que foi dito. Eu prefiro ser avaro, e juntar meus diamantes brutos. Gosto de sentir você me doer inteiro.

Não, você também não sabe o que eu sinto. Não faz idéia sequer de um quinto dos nomes que te dei dentro de mim. E nem por isso sou menos sincero.

Eu não te amo, eu não te quero, eu não te desejo. Você já é minha antes de eu ser de mim. Não importa o que aconteça, eu duvido que alguém algum dia irá te possuir como eu. Dessa forma que nem você nem eu sabemos. Essa mesmo, que você nem sabe que existe. Esse vazio tão pontiagudo.

Você me foi um tiro que errou o alvo, e o sangue escorrendo assim mesmo.

Idéia Impossível

"Deus nos dá pessoas e coisas, para aprendermos a alegria... Depois, retoma coisas e pessoas para ver se já somos capazes da alegria sozinha..."

É do Guimarães Rosa. Da novela "Buriti", se não estou enganado. No Grande Sertão, ele também menciona essa ideiazinha impossível. Não consigo imaginar a perda de certas pessoas sem ter a nítida sensação de mutilação. Sem anestesia; nem ao menos uma cana pra aliviar. Machadada, suja, enferrujada, desferida por um carrasco que cospe no chão. Depois de 30 dias numa masmorra úmida, conversando com um velhinho demente, que esteve lá a vida inteira.

Ainda que a natureza da minha felicidade seja autosuficiente. Ainda que solidão seja o ar que eu alegremente respiro.

quinta-feira, julho 19, 2007

Recorte III

- Oi!

- Olá, tudo bem?

- Olha, a essa hora da noite, melhor evitar esse tipo de questionamento filosófico polêmico.

quarta-feira, julho 18, 2007

Uma alegria

Três pardais brincavam descuidados nos fios de telefone, nos postes, no pé-de-romã. Heleninha olhava, absorta. "Que é que está fazendo?", a mãe. "Vem ver os pass'rinhos, mãe. Estão brincando de pique-pega". "Mais o que fazer, minh' filha. Mais o que fazer". Foi-se a mãe cozinhar, arrumar a casa, costurar os botões caídos da camisa do mundo. Heleninha, ficou. Os pardais agora brincavam de roda.

De volta às origens

E essa chuva que cai, e me lava a alma? Tão minha irmã, e tão capaz de me fazer feliz. Essa chuva tem História. Tem passado e tem futuro. Nosso caso é de festas, paixões e tristezas. Juntos, eu e ela. Como ser tolo e acreditar que cabem mais do que duas pessoas (eu e a chuva) nessa dança? Tudo o que é nosso é só nosso, de mais ninguém. Compartilhar é uma ilusão daqueles que não se conformam com o naufrágio que é a vida. Eu lembro sozinho; até mesmo do que vivi em conjunto. E o que é importante pra mim não o é para mais ninguém.

Você que me lê, não me considere bobo. Isso tudo vale pra você também.

Uma carta

_______?

Atenciosamente,

Eu

Encontro com a solidão

Das dores que rodeiam o mundo, a mais escurecedora é a decepção. Que sejamos surrados, escorraçados, esfolados e traídos! Que a luz do sol nos queime, mas que venha o sol como o conhecemos, todas as manhãs. E que não olhemos espantados e entristecidos quando for meio-dia e a noite continua a brincar pela janela.

Todas as dores do mundo nos são impostas, de cima a baixo, como um martelo invisível e amargo. Menos a decepção. Essa explode de dentro pra fora, rasga tecidos, adormece a mente. Não é grande. Não é sequer uma dor. É um desalinho, somente. Um suspiro, e uma certeza de que no fundo estamos todos sozinhos.

domingo, julho 01, 2007

Entre aspas II

"Você nao entende que o amor engloba tudo? Eu queria que você fosse tudo pra mim... e que também fosse nada... e que também fosse quase nada... e que fosse quase tudo."

Recorte

- Mas veja bem; é mto mais fácil gostar de alguém em momentos alegres...
- É?
- Ou não, sei lá. Falei sem pensar...
- Ah, bem. Porque eu já ia discordar.
- Você acha que é o contrario?
- Não. Eu ia discordar sem pensar!

Sorriram juntos.

quarta-feira, junho 13, 2007

Eu gosto de festa junina

Tem sempre um frio bom. Céu estrelado, e árvores pretas. Tem, claro, fogueira, salsichão e retalhos. É tempo de ser criança. Os adultos que me desculpem, mas festa junina é coisa de criança. Todo mundo que é grande vai diminuindo à medida que a fogueira vai acendendo. Adultos não se hipnotizam com fogo, não contam estrelas nem histórias de fantasma. Adultos nem sentem frio.

Roupas de caipira, tem. Dentes pretos e sardas falsificadas. Forró e quadrilha, e sempre alguém que a gente não vê há tempos. Quindim, queijadinha, suspiro, pé-de-moleque, paçoca, cuscuz, canjica, pipoca doce. E gente grande lá come essas coisas? Vai chegando junho, e já sinto uma certa comoção nos núcleos das células. A gente se assusta, mas logo acostuma e vê que é o rejuvenescimento dos festejos. São João, Santo Antônio, e um outro santo de nome também simpático; gente nunca lembra direito qual dia é de quem.

Brinca-se. Tem dança da laranja, seu mestre mandô, corrida do ovo, corrida do saco, e o que mais vier. Pode inventar também. Todo mundo vai, todo mundo é amigo. Quem é que briga debaixo de céu completinho, sem nenhuma estrela faltando? Tem música, feliz, triste, tem gente dormindo cedo. Tem parente, tem vizinho, tem quem ninguém sabe quem é. Tem é muita alegria. Festa junina é um grande abraço na gente.

Crônica?

Não consigo escrever com música ao fundo. Aliás, tenho notado que pouco posso fazer com alguém cantando. Seria uma espécie de incapacidade e atraso mental em relação à nossa espécie, que hoje em dia parece precisar de mais um punhado de braços para aproveitar todo o seu potencial de ações simultâneas? Ou - hipótese que me deixa bem melhor - é porque não consigo deixar de prestar atenção em qualquer conjunto fajuto de notas e acordes? Se esse texto fosse um desenho animado, ilustraria a idéia com um braço de música (cheio de notinhas flutuantes) me puxando pelas orelhas, que seriam as de algum animal. No entanto, cá estou eu, ouvindo Adriana Calcanhotto e sua voz límpida. E escrevendo essas letras bobas. Realmente, crônica não é o meu forte. Mas qual seria o meu forte, então? Silêncio constrangedor.

domingo, junho 10, 2007

O bom de se ter um blog

O bom de se ter um blog só seu é que você pode escrever as maiores picaretices do mundo, sem nem precisar piscar os olhos. Ser idiota por escrito é fascinante.

O quindim

O quindim é um doce
Gostoso assim
E amarelo

sexta-feira, junho 08, 2007

Entre aspas

"Não, não nos amamos. Mas ela quase me faz pensar que o amor é supérfluo."

sexta-feira, junho 01, 2007

A flauta mágica

Vê-se apenas uma haste prateada, em cuja superfície brincam alguns dedos e reflexos do sol. Além, a janela e o mundo inteiro que aguarda a música e o silêncio. Pois se só lhes mostro isso é porque o dono dos dedos e dos reflexos – o flautista e o sol, respectivamente – não são fundamentais para se entender o que acontece naquela ruela de paralelepípedos, que de paralelos não têm nada. Sobrados até onde a vista alcança, e muitas padarias, e muitas quitandas, e muito cheiro de pão e de poeira. Calçadas com crianças, janelas abertas com floreszinhas vermelhas nos parapeitos de madeira pintada de verde-escuro. Nessa ruela, ainda andam bicicletas, e os garotos ainda machucam os joelhos. Avôs jogam damas na calçada, e avós compram laranjas na vendinha, mas na ruela de paralelepípedos, ninguém nunca – e eu digo nunca nunquinha mesmo – se apaixonou. Na ruela de paralelepípedos tem pardais e rolinhas, mas não há histórias de amor. Nada de sobrenatural, apenas coisas do destino.

Ouve-se um fá. Depois um lá. As primeiras notas da flauta de prata são despretensiosas, não aquecem a vida já tão querida da ruela de paralelepípedos. São as primeiras notas de uma valsinha. As avós pagam as laranjas na vendinha, e mais um garoto machuca o joelho. Passado o prelúdio, a valsinha desata num três-por-quatro de saltitar passarinhos. Até a poeira do cheiro de poeira pensa que bonito de som, e todos se alegram um pouco, mas seguem suas vidas. Onde já se viu parar um jogo de damas por causa de uma valsa? Três bicicletas passam, cantarolando junto com o flautista, e mais um garoto machuca o joelho.

E então, no meio da primeira parte, quatro pardais saem de cena, e o rapaz de olhos grandes dobra a esquina e, com sua sacola de compras, entra na ruela de paralelepípedos. Do outro lado, a menina de saia rosa-chuvoso entra calada. Mais um garoto machuca o joelho. Nem os dedos nem os reflexos do sol acham que a valsa corta joelhos de meninos, então prossegue para a segunda parte, lenta como uma chuva em câmera lenta. Três laranjas, pede uma avó na vendinha. Enquanto isso, o rapaz de olhos grandes os fecha com dificuldade, cansado com o peso das sacolas. Pisca. Dá bom dia para uma bicicleta que por ali valsava, e caminha, pois o que fazer além de caminhar, numa rua? A menina de saia rosa-chuvoso suspira como uma boneca que de repente ganha vida, e imagina que mamãe a espera. O que fazer quando mamãe espera a não ser andar? Anda a menina de saia rosa-chuvoso.

O rapaz, cabisbaixo e louco pra chegar; a menina, pensativa. Distraídos, são pegos de surpresa pela valsinha que serpenteava ruela abaixo e ruela acima. Os dedos e os reflexos animam-se, o sopro aumenta num crescendo, e a valsa acelera, saltita de novo, e estaca. Uma notinha só, suspensa e tremida, levanta os olhares do rapaz de olhos grandes e da menina de saia rosa-chuvoso. Quando o terceiro garoto machuca o joelho, eles já estão quase de frente um para o outro. Viram-se na passagem para a terceira parte da música. Modula-se a harmonia; a terceira parte é em tom menor. Os dedos e reflexos na haste de prata movem-se devagar, sentidos, chorosos e saudosos do início dos tempos, como todos os tons menores parecem ser. Viram-se. Cruzaram olhares e suspiros. Ambos sentiram cheiro de flores, aproximaram-se. O rapaz esquecia do peso, a menina era só sonhos. Nenhum garoto machucava o joelho mais. Avôs e avós pararam seus jogos e suas compras. As bicicletas recusaram-se a andarem sozinhas. Era só estenderem os braços, e a ruela mudaria de cor.

Mas não dependia deles. A flauta mandava, os dedos e os reflexos guiariam a ruela de paralelepípedos até onde quisessem. E já haviam prolongado demais a valsinha. Desceram do alto da haste de prata, nos mais agudos pios que só os menores passarinhos podem emitir, até embaixo da terra, desceram cambaleando na escala, e a valsa saiu de compasso. Improvisava-se um desencontro, num fraseado escorregadio e algo histérico. Já longe ia o rapaz de olhos grandes, com suas sacolas pesadas. E a menina de saia rosa-chuvoso nem se fala. Não culpemos a valsa, nem os dedos, nem os reflexos. Passou. A próxima música parecia que seria um baião. E foi exatamente na primeira nota que mais um garoto machucou o joelho.

segunda-feira, maio 21, 2007

Fragmentos

Ela vai, sonhando acordada. Já volta, já volta. Mocinha que se ausenta deixa um pote de tristeza com cada um. Já volta, já volta. Quem sabe não descobre um belo segredo no caminho? Já volta, já volta. Tem gente que nasceu pra deixar saudades, foi feita pra alegrar os povoados por onde passa. Deus faz todo mundo com um propósito. Já volta, já volta. Trazendo só a sua volta. Basta. Quem tem medo de gostar das coisas?

***

Pedro ia pro trabalho. Caminhava pela rua, e topou com um pião. Marronzinho, gasto e esquecido. No canto, assim, sujo. Abaixou-se e pegou-o na mão. Ah, Pedro! Foi diminuindo, diminuindo e virando criança de novo; passou a mão nos cabelotes desarrumados da meninice. Tirou a cordinha do fundo da saudade, enrolou no pião e jogou. Ah, rodava! Ah, Pedro!

***

Música ao longe. Sonhávamos. Éramos tudo o que restava no mundo, só porque alguém tocava uma sonata qualquer ao piano. A noite caía mais profunda que nunca, o frio virava parte da gente, o mundo era bonito. E a gente caminhava, de mãos dadas, cientes de todos os segredos. Eu e você, na beira de todos os rios e lagos e mares do mundo. Nós dois, nas mais altas montanhas. A gente, em toda parte. A gente, beijos. Música ao longe. Lá menor.

O pianista desafina. A música pára. Você se esvai. Seu toque liquefaz, esfumaça, some, enfim. Logo fico só, e cego e mudo. Surdo não. Escuto o silêncio até o fim dos tempos.

quinta-feira, maio 03, 2007

Saudades

Descobrir uma nova sensação é um experiência singela. É "como uma surpresa, sem o gume da surpresa". Não é nada que afeta e marca e inesquece; é mais como uma luzinha quente acendendo em dia de muito frio. Como que abrir uma nova lacuna dentro da gente, a ser preenchida e despreenchida pelo resto da sua vida. Bom demais. E acho que isso só acontece é de noite.

Pois aprendi recentemente a sentir saudades. Mas saudades de alguma coisa todo mundo sente desde que existe. O neném tem saudades do útero assim que já nasce. E tem gente que tem a saudade do que nunca viu. É sentimentozinho que pode ir pra frente ou pra trás, dar vertigem ou calma. Não, não. Não é essa que eu aprendi a sentir. O que é, é assim, com ponto depois. Assim, substantivo intransitivo. Saudades. Consegue pensar em como é?

Aprendi com o Guimarães Rosa. Suas estórias são repletas desse sentimento sertanejo, que pede um violão e um punhado de estrelas. Sou-lhe eternamente grato por isso.

segunda-feira, abril 30, 2007

Diálogo noturno

- Às vezes dá uma vontade de descobrir alguma coisa de mim mesmo. Como se eu nunca estivesse completo quando não estivesse remoendo mistérios. Doidices, né?
- "Doidices"... Por que você sempre faz essas perguntas no final? Como se fosse vergonha sentir e pensar coisas só suas.
- E quem não faz isso, mocinha?
- Pois às vezes parece que tem um grande diabo revoando o mundo e dizendo e ordenando o certo do sentir. Ninguém nunca falou assim por inteiro, mas mesmo assim a gente envergonha. E só pode conversar aquilos que ninguém mais tem dentro de si, de tantas mil vezes aparecidas na boca do povo.
- Esse diabo é dentro da gente...
- Mas alguém botou ele lá, meu anjo. É triste pensar que nascemos assim.
- Nascemos não. Não estamos nós aqui, apagando o "doidices" da frase? Por mim, que existam mil demônios, cuspindo suas censuras; estamos aqui, de frente pra lua, com o coração desembrulhado. É assim que é bom viver. Ter alguém que me faça experimentar a humanidade que me corre nas veias. Amar é não saber o universo, juntos.

sábado, abril 28, 2007

A cidade cinza

A primeira impressão que se tem ao chegar por ali é que o sol não costuma se desviar das nuvens. Elas apertam, e só não acinzentam nada porque tudo lá embaixo não tem tanta cor assim. Vermelho nesse lugar é rasgado e quase morto; verde é uma piada. Azul ninguém sabe o que é.

Caminha-se calmamente, não há correrias nas ruas da cidade cinza. Há muito vento e muito frio, um certo desespero de umidade. Há mais espaço que coisas, e a brisa parece sussurrar.

Ali o futuro não chega, logo se descobre. Mais um pouco e vê-se que o desespero não é da umidade; a esperança é azul, nestas paragens.

Na cidade cinza não se chega de trem ou avião. E não é cidade nomeada nem sequer inventada por quem a descreve. Ela está lá, e existe pra uma coisa só. É o lugar pra onde vão todas as frases não ditas, todos os textos apagados, as cartas rasuradas, e as palavras mortas na ponta da língua. É o berço da hesitação e do medo. Se algum dia morreu-lhe uma frase no meio da fala, é pra lá que ela foi reviver.

O passado se remói a todo instante, na cidade cinza. Cada declaração de amor contida na garganta chora a si mesma nas esquinas. Cuidam das lojas de prateleiras vazias todos os gritos nunca dados. Pilhas e pilhas de esboços de cartas rasgados mendigam o que poderiam ter sido. Ah, quanta dor na cidade cinza!

Andar por lá é um misto de tristeza e respeito. A cidade cinza é a prova do quanto a humanidade é humana. Na brisa que sussurra, ouvem-se pai e filho que morrem calados, amantes que se perderam nos desentendidos, um cão que esqueceu de latir. Tristeza e respeito. Respeito e tristeza, porque a cidade cinza transpira sentimento, só que espremido, apodrecido. É sentir virado chorume.

Na cidade cinza não se chega nem se fica. Mas não é que nunca se visita. Todos a vêem uma vez. É a morte, a menor de todas as vezes e a mais curta de todas as horas. Ela nos permite apenas dois últimos desejos. Um mergulho no abismo negro que nos aguarda, e um breve sobrevôo nas torres e vilas de casas descascadas. Alguns choram, e deles se fazem as chuvas da cidade cinza.

Alguém já escreveu isso

A rosa é escrava de ser rosa, e eu de ser Bernardo.
Fosse eu Carlos Eduardo, e saberia escalar montanhas?

sábado, abril 07, 2007

No alto do morro

Lá no alto do morro, tem uma casinha pra se olhar pra vida. Vento e homens sobem sobem sobem, vão construindo e soprando castelinhos de areia que chamam de casas. Lá no alto do morro. Sabem que o alto é presente de Deus, dado e guardado no coração de cada um. O alto foi feito pra se olhar pro mundo; pra baixo, pra em volta... Mas principalmente pra olhar pra cima.

Olhar para cima e ouvir os sons: sangue correndo nas veias, células estalando. Quereres. Balançar ao vento é estar bem consigo mesmo. Lá no alto do morro, beira-mar, folha de caboclo-chorão e de aroeira. Faz coração de pedra virar poeta, faz insone virar sonhador. Faz perder a vergonha de gostar. Amor não vem de Deus nem dos homens; amor vem do de-repente.

Quem nunca subiu numa casinha no alto do morro não sabe o que é estar vivo, não senhor. Ou pelo menos não sabe que sabe. Porque toda vida o que quer é subir, e Deus está no céu, a morte debaixo da terra.

sexta-feira, abril 06, 2007

O dito do Dito

- Mas Alice, eu já disse que não sou mitômano!

Vocês podem muito bem imaginar o alvoroço que essa exclamação causou naquela família interiorana. Especialmente se eu disser que se trata da primeira frase pronunciada pelo pequeno Expedito de Jesus dos Santos, o Dito.

A mãe soltou algo como um grunhido. Teria preferido gritar de prazer e guardar o momento num cantinho especial do coração – como todos fazem nessas ocasiões. Só que o pensamento humano não é tão veloz quanto gostamos de crer; no ínfimo tempo que separa o ouvir do entender, seu cérebro já mobilizava o corpo para aquela explosão de alegria que repete incessantemente “Ele falou! Vocês ouviram? Ele falou!”. Mas então caiu em si. “Ele falou! Vocês ouviram isso? Ele falou!” mais “Que p. é essa?!”, dividido por três e noves fora, dá “algo como um grunhido”, como está dito no início do parágrafo.

Mas o dito do parágrafo anterior não é importante. O importante é o dito do Dito, que olhava com a cara de nada, típica de bebês cínicos como ele. Depois de alguns instantes de silêncio, a parentada toda se aproximou, curiosa. Uma bela de uma coincidência, o Dito falar pela primeira vez no seu próprio aniversário. Mais alguns instantes de silêncio. Parece que esperavam que o moleque se repetisse, ou pior, continuasse com um discurso de 14 horas. Mas só o que o Dito fez foi chorar um pouco, porque o Tio Né chegou perto demais. Ele sempre chorava perto do Tio Né.

- Isso é coisa do Cramunhão, né... – sentenciou, sem gravidade na voz, o Tio Né. Na verdade, ele se chamava Joaquim. Mas a maioria das pessoas só o conhecia pelo apelido, marca registrada do seu conformismo fatalista.

- Arre! Não fala besteira, mano, que o Demo num entra nessa casa! – retrucou o pai - Que foi que ele disse mesmo, mulher?

- “Mas Alice, eu já falei que não sou ‘mitomo’” – respondeu na frente um primo enxerido.

- Foi “disse”.

- Hein?

- “Disse”, e não “falei”.

Como ninguém entendeu nada desse breve diálogo, a conversa começou a se fragmentar dentro da sala. A família Jesus dos Santos inteira discutia o que o Dito tinha dito. O burburinho tratava não só da reconstituição da frase original, mas de variadas outras questões: “Quem será Alice?”, se perguntavam alguns; outros planejavam como fazer o Dito falar de novo; algumas tias beatas tentavam recordar se havia uma passagem bíblica semelhante; três ou quatro agregados foram buscar um dicionário na casa do padre; o que queriam mesmo era buscar o padre, influenciados pelo que dissera o Tio Né.

A noite foi passando e a conversa também. Os agregados voltaram de mãos abanando; o padre viajara. Alguém teve a bem-vinda idéia de jantar. Já que não conseguiam entender, queriam ao menos esquecer. Mas o mal-estar permanecia, como uma grande bola de chumbo, no meio da sala.

A situação já ficava insuportável quando um tio distante, com fama de instruído, observou que o caso não era tão extraordinário assim, afinal. O importante não é a primeira frase do bebê, mas a primeira palavra, que, convenhamos, não foi nada extraordinária. Ouviram-se murmúrios de aprovação. A credibilidade do tio, somada ao cansaço de todos, acalmou a família toda. Ou melhor, quase toda. O Dito começara a chorar.

segunda-feira, abril 02, 2007

Quarto de coisas

Juntei todas as coisas que a vida me permitiu juntar. Guardei todas as marcas de todos os ventos que já ventaram. Todas as noites me debruço sobre a experiência de vidas longas, e nada que foi nesse mundo enorme me é desconhecido ao toque do olhar. Pense em mim como um colecionador de tudo o que não é meu.

Não sou mais do que um catador de papéis, e já sou velho. Guardo a reunião das coisas e dos seres que me passam diante dos olhos. Nada vivi, mas tudo vi.

Coleciono um passado que me atravessa e me ofusca; tenho uma casa maior do que meu coração.

terça-feira, março 13, 2007

Sonho em ré menor

Ela canta, e eu calo. Quase que por acidente, ela canta. Voz pequena, encolhida de timidez. Se
fechasse os olhos, é certo que preencheria o mundo.

Eu calo, e ela canta. Violão, vida, vaga-lume. A formosura do mundo pertence a todos. Mas insisto em calar, pois o meu silêncio é que traz tudo pra mim. Ladrão da beleza das coisas, é o que sou.
Calo, e, por um indefinido instante, a sua voz é minha. Melhor que roubar doces na venda.

Certos sonhos são só nossos. Eu estava lá e vi, seu canto que me sorria. Aquela voz tão curta,
tão lua. Música que depois de mim sumia.

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

A carta

Carta sem selo ou remetente, um pouco amassada. Nunca recebia cartas, a Marina, a não ser contas e folhetos de candidatos sorridentes na época de eleição. Sorriu bem pequenininho, como sempre fazia (sorriso só pra ela). Seu rosto pálido de papel encharcado ficou assim o de uma moça abraçada. Bonita, até. Nem parecia tão solitária.

Marina: pequenininha. Cabelos louros, mas tão escuros que davam desânimo. Pêlos negros nos bracinhos finos e alvos. Olhar de quem cansou de esperar, olheiras de quem cansou de esquecer. Narizinho fino, pele branco-azulada. Jeito de boneca de pano, dessas que não falam porque são de pano. Marina tinha um adjetivo só pra ela: cândida.

Tinha as unhas tão bem arrumadas, a Marina. Gostava de roê-las, mas parece que sempre estavam em ordem, inteirinhas e grandefeitinhas. Devorava as da mão direita, enquanto trazia, na canhota, o envelope pra dentro de casa. O papagaio Cujo, cujo nome provava que Marina não era desprovida de espírito, saudava: Hoje tem feira! ... Ô dona! Me leva pro céu, mas não bagunça!.

A Vó cochilava na cadeirinha de balanço. Sonhava seus noventa e seis anos vividos, e era por isso que dormia muito. Gostava muito da neta, fazia-lhe casaquinhos azuis em cada setembro.

Marina foi pisando o assoalho – tacos velhos quase sem verniz -, arrastava um pouco o pé, olhava pra carta e entrava no seu quarto assim. Adorava a sua penteadeira. Sentou em frente a ela e rasgou a pontinha do envelope com o canino. Pôs os dedos magros de maria-branquinha no buraco e abriu o resto. Tinha um papel, só. De caderno de folha amarelada. Escrita com caneta de ponta grossa, azul, que afunda no papel, sulca com tinta. Letra carinhosa.

A carta era uma confeitaria de doçuras e afetos. Era quindim, cocada, quebra-queixo, suspiro, mariola, queijadinha, pé-de-moleque, bom-bom de frutinhas azedas. As letras miúdas davam beijos na bochecha quieta da Marina. Descobria que gostava do cheiro de tinta de caneta, gostava do cheiro do papel amarelado, gostava de receber cartas. Marina não sorria; era toda olhos arregalados de felicidade.

Marina começou a pensar na resposta, mas assim sem remetente era que não dava pra escrever de volta. Uma pena, pois ela tinha tudo tão bonito na sua penteadeira, coisas de escrever de menina. Pensamentos. Já lia mais e mais que a carta. Brincava de ver estrelas através do teto. E escrevia de volta, nem que o vento só que fosse levar a carta certinha pra quem devia de recebê-la. Toda-todinha alegria.

Deu a hora do remédio da Vó. Levantou veloz da cama, correu pra sala pra acordar a velhinha com muitos abraços, mas não sem antes se olhar demorado no espelho. Não sorria de novo; o melhor riso da Marina era mesmo com os olhos. Deixou a carta guardada solta, sem terminar de ler, em cima da cama. Vento de cima que traz tristeza: logo ia ler no finzinho os mil beijos escritos pra uma certa Alice.

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Revisitando velharias IV

Esse é de fevereiro de 2006, e não tem título.

***

O jogo é Botafogo X Flamengo, e não parece muito importante. É sábado de carnaval e início do returno do Campeonato Carioca. Segunda rodada, para ser mais exato. Além disso, o Maracanã está em obras, sem a geral nem as cadeiras comuns; o Maracanã não é bem ele mesmo.

Entretanto, para aquele rapaz que vemos ali, quase cantando o hino do Botafogo, esse jogo tem algo de especial. O clássico desse sábado tem o imperceptível sabor da esperança inconsciente, daquelas que só se revelam depois que alguém escreve a nossa história.

Já disse que ele quase canta o hino do Botafogo. Quase. Não pode, ainda que às vezes a torcida o contagiasse a ponto de querê-lo. Mas não: era vascaíno. Como todo bom bacalhau, era antiflamenguista, e gritava e cantava com a torcida botafoguense. Menos o hino; hino de time é coisa sagrada, à qual se deve respeito e fidelidade.

Mas o que faz ele numa batalha que não era dele? Revive. O que esse jogo tem de especial? Relembra. Botafogo X Flamengo havia sido a primeira partida que assistira na vida. Há mais de quinze anos, botafoguense por influência do pai, pisara na arquibancada do Maracanã pela primeira de muitas vezes. Lembro que portava uma bandeira alvinegra, feita pelo pai. Havia ido com o pai. Torcera com o pai. E o Fogão vencera por 2x1.

Mais de quinze anos depois, era com o pai que ele vinha; era com ele que torcia. E aquela repetição gostosa o fazia lembrar-se dos anos passados. Um tempo de Maracanãs lotados, voltas pra casa festejantes... Hoje ele acha que o Vasco não dura muito mais tempo na primeira divisão; o Botafogo não sai da lama há tempos. Nas voltas pra casa, só encontra a casa vazia, e, agora, pintada de branco. Sem manchas de pé, rachaduras, umidade: uma mão de tinta na infância em família. Também sua casa não é bem ela mesma.

Mas lá estavam os dois: cantando – ou quase cantando – o hino do Botafogo. Felizes, o juiz apita o fim do primeiro tempo, e o placar mostra os mesmos números de antes: Botafogo 2, Flamengo 1. Tudo se repete, exceto a bandeira preta-e-branca, os assentos de concreto e a escalação das equipes; ele não duvida de que até o vendedor de Mate Leão seja o mesmo. É nesse ponto que – ele nem percebe – surge a ilusão esperançosa de que as coisas voltem ao seu lugar. Ao olhar para o lado, ele começa até a sentir familiaridade no rosto do pai, antes tão estranho e distante de quinze anos atrás. E as paredes de casa ainda estão sujas (o Flamengo não está jogando nada). Pode até ouvir os passinhos metálicos da sua cachorra – morta há tempos – correndo pelo quintal depois do jogo, enfurecida com os fogos alvinegros (o Flamengo não está jogando nada).

Todavia, amanhã era o vôo de volta do pai. No domingo de carnaval ele partia para longe, onde nem importa onde seja. Ademais, ainda tinha o segundo tempo. E o segundo tempo veio, não com a força de um dilúvio, mas a de um sutil traidor; daqueles que, de dentro, abrem os portões da cidade para o inimigo. A defesa botafoguense vacilou, e o Flamengo – eterno anticristo do futebol carioca – não tardou a empatar e virar o jogo. Botafogo 2, Flamengo 3. Amanhã os jornais vão culpar o lateral-direito do Botafogo; ou a garra rubro-negra. Eu acho que não tinha como ser diferente.

Ninguém mais canta o hino. Parece que os pais de quinze mil botafoguenses irão voar para longe amanhã, e todos querem voltar logo para se despedir. A massa flamenguista fica; o rapaz e seu pai vão para São Cristóvão pegar o trem. A casa alvíssima os espera.

Revisitando velharias III

Esse é de março de 2006 (só sei isso porque o espertíssimo Windows guarda a data de seus arquivos).

Se as sextas-feiras falassem

Encontro. Eita palavrinha que denota acaso. Pensando assim, sem objeto direto, parece até que bate de testa testa. Assim, encontro. Desculpe, machucou?

O pior é que naquela sexta-feira foi assim mesmo. Não que tenha calo na minha testa; sejamos metafóricos. Era encontro combinado e agendado, que nem consulta de médico. Ele de calça jeans, ela de blusinha florida. (Ele era eu, note-se). Ela na banca de jornal; ele atrasado mais ou menos. E lá foram eles, ainda desencontrados, mas já desconfiados.

Do assoviar descuidado para o “ai, minha testa!” foi – como sempre é – um simples-ser inexplicado. Foi, ué. Aconteceu em algum ponto entre o nascimento de e a morte de ambos; não posso ser mais preciso. “Ploc!”: testa com testa. Doeu gostoso.

Ele era eu. Viveu feliz para sempre. Se você encontrá-lo, ele saberá contar melhor. Porque hoje eu não sou mais ele. Saí de cena, fui catar coquinhos na praia do esquecimento. Ele ainda está lá, com ela; soube que acaba de inventar o elixir da imortalidade. Onde, ao certo, é que não sei. Pergunte àquela sexta-feira; ela guarda todos os segredos.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Lá vão os homens

Lá vai o homem que tem mania de lembrar do amanhã.
Viu todas as más sortes do mundo.
É uma desfaçatez do destino,
O homem que tem mania de lembrar do amanhã.

Lá vai o homem que perdeu seus amores.
Já não sabe onde fica seu peito.
É um perdão ambulante,
O homem que perdeu seus amores.

Lá vai o homem que não olha pra trás.
Esqueceu sua sombra na última esquina.
É uma flor que jamais desabrocha,
O homem que não olha pra trás.

Lá vai o homem que luta.
Sorriu a cada derrota.
É a eterna solidão,
O homem que luta.

Lá vai o homem que nada faz.
Vestiu indiferença a cada manhã.
É o esquecimento do mundo,
O homem que nada faz.

Lá vai o homem que morreu.
Caiu do sétimo andar.
Parece que nasceu para isso,
O homem que morreu.

domingo, fevereiro 11, 2007

Mais chuva

A chuva cai sem gostar de ninguém
Então como é que afaga dentro do peito
E anuvia
E irradia
E sentencia
O nascimento do bem-querer?

Cair e molhar:
Os dois afazeres da chuva
Sonhar acordado é por nossa conta

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Revisitando velharias II

Esse aí eu não lembro quando foi escrito. Faz teeeempo.

"
Aonde estamos indo, mamãe?
Ao parque, à praia, ao clube?
À vovó, ao zoológico, à piscina?

Estamos indo ao lago, ao jardim, à festa?
À praça, ao circo, jogar bola no vizinho?
Será à loja de brinquedos, à escola ou à floresta?
Ou quem sabe ao “fliper”, ao rio, ao pedalinho?

Conte-me logo, que logo me anima
Saber pra onde vamos.
Iremos ver as estrelas na colina
Ou visitar meu amiguinho que faz anos?

Não, meu filhinho.
Hoje o palhaço do circo não tem graça
Não vamos andar de pedalinho
Nem brincar de balanço na praça.

Hoje não vamos nadar no lago frio
Hoje é folga na escola.
Hoje não iremos pescar no rio
Hoje não podemos jogar bola.

Nós vamos a um lugar muito bonito
Mas muito triste e muito sério
Um lugar bem longe e bem perdido
Que se chama cemitério

O que é cemitério, mamãe?

O cemitério é a casa dos defuntos
É pra lá que vamos, meu filhinho.
Conheceremos o lugar juntos
Mas você vai voltar sozinho.

Mas mamãe!
Sabe que temo por sozinho estar
Sabe que minha alma a solidão arrasa.
Mamãe, como sairei de lá?
Eu não sei voltar pra casa.
"

Revisitando velharias

Texto escrito num sábado, 14 de junho de 2003. Não sei por que ressuscito isso agora. Nem cortei o cabelo.

"
Crônicas do subúrbio

Bela tarde de quinta-feira, no pacato bairro da Praça Seca, Zona Oeste carioca. A cena se desenrola dentro de um barbeiro. Sim, barbeiro. Para se chamar assim, o estabelecimento deve contar com todos os seguintes elementos: funcionários de meia-idade, casados e barrigudos; clientes exclusivamente masculinos, apesar da plaquinha de "unissex"; nenhum cabeleireiro gay ou mesmo efeminado; nenhuma "Contigo", "Tititi" ou "Cláudia" nos sofazinhos de espera.

Portanto, era num barbeiro em que eu cortava o cabelo nesse dia. No dia anterior, o Cruzeiro havia massacrado o Flamengo e, como é de praxe em dia depois de jogo e em locais com muitos homens juntos, todos discutiam futebol. Os flamenguistas xingavam todo o plantel rubro-negro e suas respectivas mães, os vascaínos e tricolores se regozijavam com a revolta dos urubus, fazendo periódicas piadinhas, e os botafoguenses... Bem, os botafoguenses ficavam calados porque não tinham muito o que dizer. Enquanto rolava esse agradável mas redundante papo, entra - coisa incrível - uma figura feminina no lugar: a esposa de um dos funcionários. É como gota de chuva no Saara, ou poeira em alto-mar. Mas o mundo não acaba, e o assunto pára para as protocolares saudações.

A mulher, casualmente, dá a notícia: "Ontem mataram quatro traficantes; neguinho tá mandando fechar tudo!". "Quem te falou isso?", pergunta o marido dela, com a tesoura na mão. "O pessoal lá do açougue. Todo mundo já sabe. Parece que na Barão (Rua Barão) já tá tudo fechado. Já-já mandam fechar aqui também.". "Ih! Então o Zé da Padaria já fechou...". Até então quieto, o barbeiro encarregado do meu cabelo comenta: "Merda! Só faltava essa! Se morre o presidente, ninguém fecha nada; mas morre esses "gente boa" aí e acontece isso.".

Depois de uma breve discussão - também redundante - sobre como a violência estava horrível na cidade, todos, como que combinados, calaram, meio que refletindo, gravemente, sobre a vida. Foi um momento solene, emocionante. Todos aqueles homens suburbanamente simples, por um momento, uniram-se na mesma contemplação.

Depois de 1 minuto - ou 10 segundos, ou até 10 minutos, quem sabe -, um deles quebrou o silêncio: "Tá vendo? Se o mengão tivesse ganho não tinha acontecido isso!". Todos caíram na gargalhada, esqueceram as preocupações e o salão voltou ao normal, dessa vez xingando o André Bahia, que "chutou aquela bola pra escanteio, e depois saiu o gol. Crioulo burro!"
"

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Menos palavras, por favor

bom te ver tendo bons dias
bom te ver destilando alegrias
bom te ver, enfim.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

João e Maria

Ela, poetisa do acaso
Ele, vigia das coincidências

Ela passava as noites assim:
Decifrar personagens inexistentes
Roubar exclamações nunca ditas
Pintar castelos invisíveis
Inventava um mundo sem nome.

Ele bebia em seus lábios
Cada palavra
Ingênuo, sonhava ser
Cada quimera
Vestia os nomes
De cada anônimo
Que dela surgia.

Ela, poetisa do acaso
Ele, vigia das coincidências

Ela divertia-se
O universo explorava
Com tinta, papel e
Nenhuma pretensão
Ela era um caminhar em frente
Sem olhar para os lados.

Ele subia nas árvores
E a via passar
Contava-lhe os passos
Era-lhe chão e mar
Esbarrava nela de longe
Anunciava-lhe com mudez
A sua esperança.

Ela, poetisa do acaso
Ele, vigia das coincidências

Fragmento de carta não-enviada

Estar suspenso no ar
A isto que chamo inspiração.
É como se do alto visse o mundo
Onde todos os horizontes
Estão ao alcance da mão
Onde todos os trabalhos são pequenos
Onde sorrir não precisa de motivo
E ao amor não carece razão.

sábado, fevereiro 03, 2007

Reflexão chuvosa n°2

Meu samba, se existisse, seria cantado ao pé do ouvido
Antes de dormir, virado pras estrelas.
Seria um samba pra espantar o frio de dois corpos cansados.

Meu samba, se existisse, teria uma pitada de leite de coco
Soaria como um sino que se apaga
E teria, quiçá, um cheiro de maresia.

Mas meu samba é sonho distante
Pintado em mil quadros
Atrás de mil janelas

Compor sem ritmo ou melodia
Dedilhar um violão sem cordas
Cantar rouco de desespero
Essa é a música que me foi destinada.

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Reflexão chuvosa n°1

Sonho com o dia em que aposentaremos os poetas. O dia em que a beleza não mais se encerrará em versos e rimas. O dia em que as odes serão obsoletas. Aguardo a noite em que dançaremos sem música.

domingo, janeiro 28, 2007

Dois mundos

Ela passa mulher na calçada
Todas as sombras abrindo caminho
Onde pisa só pode haver luz
Que a vida não esconde o que é lindo

E mil poetas cantarão sua beleza
Outros tantos sorrirão com tristeza
Ao ver a mulher do mundo passar

Há o fascínio nos olhos
Até os cegos podem vê-la a andar
Há o sublime do corpo
É a mulher de todos que podem sonhar

Em seu caminhar descuidado
Não percebe da cidade os desejos.
Espalha à vontade os encantos
Mas reserva para si seus segredos.

Ah! Dono da sorte do mundo
Eu que a vejo menina.
Eu que ouço em seus olhos
Perdidas canções infantis.
Eu que pude ler em seus lábios
O amor de criança
Seus pés sujos de doce e de dança
Sou dono do seu segredo de atriz.

sábado, janeiro 06, 2007

Quatro parágrafos amarelados

Lá fora a chuva chove; molha os ossos da cidade, quebra as vidraças do conforto, umedece a pintura da vida. Aqui dentro ela também chove; molha a garganta, quebra o silêncio e o tédio, umedece a pena da imaginação. Amarelada de indiferença.

Lá fora a chuva chove; come os cantos das ruas, come os insetos das casas, come os pés das camas e as lágrimas dos olhos. Aqui dentro a chuva também chove, e também come. Come o calor, come os mosquitos, come o medo do escuro. Não come as lágrimas; lava-as. Amareladas de indiferença.

Lá fora a chuva mata. Um, dois, três, setenta vírgula oito por ano. Aqui dentro ela traz o lanche na bandeja. Biscoitos. Um, dois, três, oitocentos por mês. Há mais biscoitos que mortos. Rimos disso com farinha nos dentes. Amarelados de indiferença.

Dia seguinte a chuva seca. Evapora. Sobe, sobe, levando consigo terra, reboco e passado. É leve demais, não vira nuvem. Dispara pra cima, ultrapassa os céus, sobe até aquele lugar onde mesmo Deus precisa levantar o pescoço pra ver. Aqui dentro a chuva também seca. Evapora com o calor dos fogões e das televisões. Mistura-se ao meu suor, e sobe. Sobe, levando consigo sonhos, risos e a saudável hipocrisia. Leve como o nada, é certo que nuvem será de novo, e sempre. Roncará, e depois cairá, chuva mais uma vez. Amarelada de indiferença.