sábado, abril 28, 2007

A cidade cinza

A primeira impressão que se tem ao chegar por ali é que o sol não costuma se desviar das nuvens. Elas apertam, e só não acinzentam nada porque tudo lá embaixo não tem tanta cor assim. Vermelho nesse lugar é rasgado e quase morto; verde é uma piada. Azul ninguém sabe o que é.

Caminha-se calmamente, não há correrias nas ruas da cidade cinza. Há muito vento e muito frio, um certo desespero de umidade. Há mais espaço que coisas, e a brisa parece sussurrar.

Ali o futuro não chega, logo se descobre. Mais um pouco e vê-se que o desespero não é da umidade; a esperança é azul, nestas paragens.

Na cidade cinza não se chega de trem ou avião. E não é cidade nomeada nem sequer inventada por quem a descreve. Ela está lá, e existe pra uma coisa só. É o lugar pra onde vão todas as frases não ditas, todos os textos apagados, as cartas rasuradas, e as palavras mortas na ponta da língua. É o berço da hesitação e do medo. Se algum dia morreu-lhe uma frase no meio da fala, é pra lá que ela foi reviver.

O passado se remói a todo instante, na cidade cinza. Cada declaração de amor contida na garganta chora a si mesma nas esquinas. Cuidam das lojas de prateleiras vazias todos os gritos nunca dados. Pilhas e pilhas de esboços de cartas rasgados mendigam o que poderiam ter sido. Ah, quanta dor na cidade cinza!

Andar por lá é um misto de tristeza e respeito. A cidade cinza é a prova do quanto a humanidade é humana. Na brisa que sussurra, ouvem-se pai e filho que morrem calados, amantes que se perderam nos desentendidos, um cão que esqueceu de latir. Tristeza e respeito. Respeito e tristeza, porque a cidade cinza transpira sentimento, só que espremido, apodrecido. É sentir virado chorume.

Na cidade cinza não se chega nem se fica. Mas não é que nunca se visita. Todos a vêem uma vez. É a morte, a menor de todas as vezes e a mais curta de todas as horas. Ela nos permite apenas dois últimos desejos. Um mergulho no abismo negro que nos aguarda, e um breve sobrevôo nas torres e vilas de casas descascadas. Alguns choram, e deles se fazem as chuvas da cidade cinza.

Um comentário:

Verônica disse...

Eu sei que você não pediu comentário nenhum, mas cabe dizer que não consigo comentar...
Se fosse pra dizer alguma coisa, acho que eu diria que tenho extrema curiosidade por cada pedaço cinza dessa cidade, por mais triste e "esquecida" que ela possa ser... talvez encontrasse resposta pra muita coisa lá...