segunda-feira, fevereiro 26, 2007

A carta

Carta sem selo ou remetente, um pouco amassada. Nunca recebia cartas, a Marina, a não ser contas e folhetos de candidatos sorridentes na época de eleição. Sorriu bem pequenininho, como sempre fazia (sorriso só pra ela). Seu rosto pálido de papel encharcado ficou assim o de uma moça abraçada. Bonita, até. Nem parecia tão solitária.

Marina: pequenininha. Cabelos louros, mas tão escuros que davam desânimo. Pêlos negros nos bracinhos finos e alvos. Olhar de quem cansou de esperar, olheiras de quem cansou de esquecer. Narizinho fino, pele branco-azulada. Jeito de boneca de pano, dessas que não falam porque são de pano. Marina tinha um adjetivo só pra ela: cândida.

Tinha as unhas tão bem arrumadas, a Marina. Gostava de roê-las, mas parece que sempre estavam em ordem, inteirinhas e grandefeitinhas. Devorava as da mão direita, enquanto trazia, na canhota, o envelope pra dentro de casa. O papagaio Cujo, cujo nome provava que Marina não era desprovida de espírito, saudava: Hoje tem feira! ... Ô dona! Me leva pro céu, mas não bagunça!.

A Vó cochilava na cadeirinha de balanço. Sonhava seus noventa e seis anos vividos, e era por isso que dormia muito. Gostava muito da neta, fazia-lhe casaquinhos azuis em cada setembro.

Marina foi pisando o assoalho – tacos velhos quase sem verniz -, arrastava um pouco o pé, olhava pra carta e entrava no seu quarto assim. Adorava a sua penteadeira. Sentou em frente a ela e rasgou a pontinha do envelope com o canino. Pôs os dedos magros de maria-branquinha no buraco e abriu o resto. Tinha um papel, só. De caderno de folha amarelada. Escrita com caneta de ponta grossa, azul, que afunda no papel, sulca com tinta. Letra carinhosa.

A carta era uma confeitaria de doçuras e afetos. Era quindim, cocada, quebra-queixo, suspiro, mariola, queijadinha, pé-de-moleque, bom-bom de frutinhas azedas. As letras miúdas davam beijos na bochecha quieta da Marina. Descobria que gostava do cheiro de tinta de caneta, gostava do cheiro do papel amarelado, gostava de receber cartas. Marina não sorria; era toda olhos arregalados de felicidade.

Marina começou a pensar na resposta, mas assim sem remetente era que não dava pra escrever de volta. Uma pena, pois ela tinha tudo tão bonito na sua penteadeira, coisas de escrever de menina. Pensamentos. Já lia mais e mais que a carta. Brincava de ver estrelas através do teto. E escrevia de volta, nem que o vento só que fosse levar a carta certinha pra quem devia de recebê-la. Toda-todinha alegria.

Deu a hora do remédio da Vó. Levantou veloz da cama, correu pra sala pra acordar a velhinha com muitos abraços, mas não sem antes se olhar demorado no espelho. Não sorria de novo; o melhor riso da Marina era mesmo com os olhos. Deixou a carta guardada solta, sem terminar de ler, em cima da cama. Vento de cima que traz tristeza: logo ia ler no finzinho os mil beijos escritos pra uma certa Alice.

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Revisitando velharias IV

Esse é de fevereiro de 2006, e não tem título.

***

O jogo é Botafogo X Flamengo, e não parece muito importante. É sábado de carnaval e início do returno do Campeonato Carioca. Segunda rodada, para ser mais exato. Além disso, o Maracanã está em obras, sem a geral nem as cadeiras comuns; o Maracanã não é bem ele mesmo.

Entretanto, para aquele rapaz que vemos ali, quase cantando o hino do Botafogo, esse jogo tem algo de especial. O clássico desse sábado tem o imperceptível sabor da esperança inconsciente, daquelas que só se revelam depois que alguém escreve a nossa história.

Já disse que ele quase canta o hino do Botafogo. Quase. Não pode, ainda que às vezes a torcida o contagiasse a ponto de querê-lo. Mas não: era vascaíno. Como todo bom bacalhau, era antiflamenguista, e gritava e cantava com a torcida botafoguense. Menos o hino; hino de time é coisa sagrada, à qual se deve respeito e fidelidade.

Mas o que faz ele numa batalha que não era dele? Revive. O que esse jogo tem de especial? Relembra. Botafogo X Flamengo havia sido a primeira partida que assistira na vida. Há mais de quinze anos, botafoguense por influência do pai, pisara na arquibancada do Maracanã pela primeira de muitas vezes. Lembro que portava uma bandeira alvinegra, feita pelo pai. Havia ido com o pai. Torcera com o pai. E o Fogão vencera por 2x1.

Mais de quinze anos depois, era com o pai que ele vinha; era com ele que torcia. E aquela repetição gostosa o fazia lembrar-se dos anos passados. Um tempo de Maracanãs lotados, voltas pra casa festejantes... Hoje ele acha que o Vasco não dura muito mais tempo na primeira divisão; o Botafogo não sai da lama há tempos. Nas voltas pra casa, só encontra a casa vazia, e, agora, pintada de branco. Sem manchas de pé, rachaduras, umidade: uma mão de tinta na infância em família. Também sua casa não é bem ela mesma.

Mas lá estavam os dois: cantando – ou quase cantando – o hino do Botafogo. Felizes, o juiz apita o fim do primeiro tempo, e o placar mostra os mesmos números de antes: Botafogo 2, Flamengo 1. Tudo se repete, exceto a bandeira preta-e-branca, os assentos de concreto e a escalação das equipes; ele não duvida de que até o vendedor de Mate Leão seja o mesmo. É nesse ponto que – ele nem percebe – surge a ilusão esperançosa de que as coisas voltem ao seu lugar. Ao olhar para o lado, ele começa até a sentir familiaridade no rosto do pai, antes tão estranho e distante de quinze anos atrás. E as paredes de casa ainda estão sujas (o Flamengo não está jogando nada). Pode até ouvir os passinhos metálicos da sua cachorra – morta há tempos – correndo pelo quintal depois do jogo, enfurecida com os fogos alvinegros (o Flamengo não está jogando nada).

Todavia, amanhã era o vôo de volta do pai. No domingo de carnaval ele partia para longe, onde nem importa onde seja. Ademais, ainda tinha o segundo tempo. E o segundo tempo veio, não com a força de um dilúvio, mas a de um sutil traidor; daqueles que, de dentro, abrem os portões da cidade para o inimigo. A defesa botafoguense vacilou, e o Flamengo – eterno anticristo do futebol carioca – não tardou a empatar e virar o jogo. Botafogo 2, Flamengo 3. Amanhã os jornais vão culpar o lateral-direito do Botafogo; ou a garra rubro-negra. Eu acho que não tinha como ser diferente.

Ninguém mais canta o hino. Parece que os pais de quinze mil botafoguenses irão voar para longe amanhã, e todos querem voltar logo para se despedir. A massa flamenguista fica; o rapaz e seu pai vão para São Cristóvão pegar o trem. A casa alvíssima os espera.

Revisitando velharias III

Esse é de março de 2006 (só sei isso porque o espertíssimo Windows guarda a data de seus arquivos).

Se as sextas-feiras falassem

Encontro. Eita palavrinha que denota acaso. Pensando assim, sem objeto direto, parece até que bate de testa testa. Assim, encontro. Desculpe, machucou?

O pior é que naquela sexta-feira foi assim mesmo. Não que tenha calo na minha testa; sejamos metafóricos. Era encontro combinado e agendado, que nem consulta de médico. Ele de calça jeans, ela de blusinha florida. (Ele era eu, note-se). Ela na banca de jornal; ele atrasado mais ou menos. E lá foram eles, ainda desencontrados, mas já desconfiados.

Do assoviar descuidado para o “ai, minha testa!” foi – como sempre é – um simples-ser inexplicado. Foi, ué. Aconteceu em algum ponto entre o nascimento de e a morte de ambos; não posso ser mais preciso. “Ploc!”: testa com testa. Doeu gostoso.

Ele era eu. Viveu feliz para sempre. Se você encontrá-lo, ele saberá contar melhor. Porque hoje eu não sou mais ele. Saí de cena, fui catar coquinhos na praia do esquecimento. Ele ainda está lá, com ela; soube que acaba de inventar o elixir da imortalidade. Onde, ao certo, é que não sei. Pergunte àquela sexta-feira; ela guarda todos os segredos.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Lá vão os homens

Lá vai o homem que tem mania de lembrar do amanhã.
Viu todas as más sortes do mundo.
É uma desfaçatez do destino,
O homem que tem mania de lembrar do amanhã.

Lá vai o homem que perdeu seus amores.
Já não sabe onde fica seu peito.
É um perdão ambulante,
O homem que perdeu seus amores.

Lá vai o homem que não olha pra trás.
Esqueceu sua sombra na última esquina.
É uma flor que jamais desabrocha,
O homem que não olha pra trás.

Lá vai o homem que luta.
Sorriu a cada derrota.
É a eterna solidão,
O homem que luta.

Lá vai o homem que nada faz.
Vestiu indiferença a cada manhã.
É o esquecimento do mundo,
O homem que nada faz.

Lá vai o homem que morreu.
Caiu do sétimo andar.
Parece que nasceu para isso,
O homem que morreu.

domingo, fevereiro 11, 2007

Mais chuva

A chuva cai sem gostar de ninguém
Então como é que afaga dentro do peito
E anuvia
E irradia
E sentencia
O nascimento do bem-querer?

Cair e molhar:
Os dois afazeres da chuva
Sonhar acordado é por nossa conta

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Revisitando velharias II

Esse aí eu não lembro quando foi escrito. Faz teeeempo.

"
Aonde estamos indo, mamãe?
Ao parque, à praia, ao clube?
À vovó, ao zoológico, à piscina?

Estamos indo ao lago, ao jardim, à festa?
À praça, ao circo, jogar bola no vizinho?
Será à loja de brinquedos, à escola ou à floresta?
Ou quem sabe ao “fliper”, ao rio, ao pedalinho?

Conte-me logo, que logo me anima
Saber pra onde vamos.
Iremos ver as estrelas na colina
Ou visitar meu amiguinho que faz anos?

Não, meu filhinho.
Hoje o palhaço do circo não tem graça
Não vamos andar de pedalinho
Nem brincar de balanço na praça.

Hoje não vamos nadar no lago frio
Hoje é folga na escola.
Hoje não iremos pescar no rio
Hoje não podemos jogar bola.

Nós vamos a um lugar muito bonito
Mas muito triste e muito sério
Um lugar bem longe e bem perdido
Que se chama cemitério

O que é cemitério, mamãe?

O cemitério é a casa dos defuntos
É pra lá que vamos, meu filhinho.
Conheceremos o lugar juntos
Mas você vai voltar sozinho.

Mas mamãe!
Sabe que temo por sozinho estar
Sabe que minha alma a solidão arrasa.
Mamãe, como sairei de lá?
Eu não sei voltar pra casa.
"

Revisitando velharias

Texto escrito num sábado, 14 de junho de 2003. Não sei por que ressuscito isso agora. Nem cortei o cabelo.

"
Crônicas do subúrbio

Bela tarde de quinta-feira, no pacato bairro da Praça Seca, Zona Oeste carioca. A cena se desenrola dentro de um barbeiro. Sim, barbeiro. Para se chamar assim, o estabelecimento deve contar com todos os seguintes elementos: funcionários de meia-idade, casados e barrigudos; clientes exclusivamente masculinos, apesar da plaquinha de "unissex"; nenhum cabeleireiro gay ou mesmo efeminado; nenhuma "Contigo", "Tititi" ou "Cláudia" nos sofazinhos de espera.

Portanto, era num barbeiro em que eu cortava o cabelo nesse dia. No dia anterior, o Cruzeiro havia massacrado o Flamengo e, como é de praxe em dia depois de jogo e em locais com muitos homens juntos, todos discutiam futebol. Os flamenguistas xingavam todo o plantel rubro-negro e suas respectivas mães, os vascaínos e tricolores se regozijavam com a revolta dos urubus, fazendo periódicas piadinhas, e os botafoguenses... Bem, os botafoguenses ficavam calados porque não tinham muito o que dizer. Enquanto rolava esse agradável mas redundante papo, entra - coisa incrível - uma figura feminina no lugar: a esposa de um dos funcionários. É como gota de chuva no Saara, ou poeira em alto-mar. Mas o mundo não acaba, e o assunto pára para as protocolares saudações.

A mulher, casualmente, dá a notícia: "Ontem mataram quatro traficantes; neguinho tá mandando fechar tudo!". "Quem te falou isso?", pergunta o marido dela, com a tesoura na mão. "O pessoal lá do açougue. Todo mundo já sabe. Parece que na Barão (Rua Barão) já tá tudo fechado. Já-já mandam fechar aqui também.". "Ih! Então o Zé da Padaria já fechou...". Até então quieto, o barbeiro encarregado do meu cabelo comenta: "Merda! Só faltava essa! Se morre o presidente, ninguém fecha nada; mas morre esses "gente boa" aí e acontece isso.".

Depois de uma breve discussão - também redundante - sobre como a violência estava horrível na cidade, todos, como que combinados, calaram, meio que refletindo, gravemente, sobre a vida. Foi um momento solene, emocionante. Todos aqueles homens suburbanamente simples, por um momento, uniram-se na mesma contemplação.

Depois de 1 minuto - ou 10 segundos, ou até 10 minutos, quem sabe -, um deles quebrou o silêncio: "Tá vendo? Se o mengão tivesse ganho não tinha acontecido isso!". Todos caíram na gargalhada, esqueceram as preocupações e o salão voltou ao normal, dessa vez xingando o André Bahia, que "chutou aquela bola pra escanteio, e depois saiu o gol. Crioulo burro!"
"

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Menos palavras, por favor

bom te ver tendo bons dias
bom te ver destilando alegrias
bom te ver, enfim.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

João e Maria

Ela, poetisa do acaso
Ele, vigia das coincidências

Ela passava as noites assim:
Decifrar personagens inexistentes
Roubar exclamações nunca ditas
Pintar castelos invisíveis
Inventava um mundo sem nome.

Ele bebia em seus lábios
Cada palavra
Ingênuo, sonhava ser
Cada quimera
Vestia os nomes
De cada anônimo
Que dela surgia.

Ela, poetisa do acaso
Ele, vigia das coincidências

Ela divertia-se
O universo explorava
Com tinta, papel e
Nenhuma pretensão
Ela era um caminhar em frente
Sem olhar para os lados.

Ele subia nas árvores
E a via passar
Contava-lhe os passos
Era-lhe chão e mar
Esbarrava nela de longe
Anunciava-lhe com mudez
A sua esperança.

Ela, poetisa do acaso
Ele, vigia das coincidências

Fragmento de carta não-enviada

Estar suspenso no ar
A isto que chamo inspiração.
É como se do alto visse o mundo
Onde todos os horizontes
Estão ao alcance da mão
Onde todos os trabalhos são pequenos
Onde sorrir não precisa de motivo
E ao amor não carece razão.

sábado, fevereiro 03, 2007

Reflexão chuvosa n°2

Meu samba, se existisse, seria cantado ao pé do ouvido
Antes de dormir, virado pras estrelas.
Seria um samba pra espantar o frio de dois corpos cansados.

Meu samba, se existisse, teria uma pitada de leite de coco
Soaria como um sino que se apaga
E teria, quiçá, um cheiro de maresia.

Mas meu samba é sonho distante
Pintado em mil quadros
Atrás de mil janelas

Compor sem ritmo ou melodia
Dedilhar um violão sem cordas
Cantar rouco de desespero
Essa é a música que me foi destinada.

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Reflexão chuvosa n°1

Sonho com o dia em que aposentaremos os poetas. O dia em que a beleza não mais se encerrará em versos e rimas. O dia em que as odes serão obsoletas. Aguardo a noite em que dançaremos sem música.