segunda-feira, abril 30, 2007

Diálogo noturno

- Às vezes dá uma vontade de descobrir alguma coisa de mim mesmo. Como se eu nunca estivesse completo quando não estivesse remoendo mistérios. Doidices, né?
- "Doidices"... Por que você sempre faz essas perguntas no final? Como se fosse vergonha sentir e pensar coisas só suas.
- E quem não faz isso, mocinha?
- Pois às vezes parece que tem um grande diabo revoando o mundo e dizendo e ordenando o certo do sentir. Ninguém nunca falou assim por inteiro, mas mesmo assim a gente envergonha. E só pode conversar aquilos que ninguém mais tem dentro de si, de tantas mil vezes aparecidas na boca do povo.
- Esse diabo é dentro da gente...
- Mas alguém botou ele lá, meu anjo. É triste pensar que nascemos assim.
- Nascemos não. Não estamos nós aqui, apagando o "doidices" da frase? Por mim, que existam mil demônios, cuspindo suas censuras; estamos aqui, de frente pra lua, com o coração desembrulhado. É assim que é bom viver. Ter alguém que me faça experimentar a humanidade que me corre nas veias. Amar é não saber o universo, juntos.

sábado, abril 28, 2007

A cidade cinza

A primeira impressão que se tem ao chegar por ali é que o sol não costuma se desviar das nuvens. Elas apertam, e só não acinzentam nada porque tudo lá embaixo não tem tanta cor assim. Vermelho nesse lugar é rasgado e quase morto; verde é uma piada. Azul ninguém sabe o que é.

Caminha-se calmamente, não há correrias nas ruas da cidade cinza. Há muito vento e muito frio, um certo desespero de umidade. Há mais espaço que coisas, e a brisa parece sussurrar.

Ali o futuro não chega, logo se descobre. Mais um pouco e vê-se que o desespero não é da umidade; a esperança é azul, nestas paragens.

Na cidade cinza não se chega de trem ou avião. E não é cidade nomeada nem sequer inventada por quem a descreve. Ela está lá, e existe pra uma coisa só. É o lugar pra onde vão todas as frases não ditas, todos os textos apagados, as cartas rasuradas, e as palavras mortas na ponta da língua. É o berço da hesitação e do medo. Se algum dia morreu-lhe uma frase no meio da fala, é pra lá que ela foi reviver.

O passado se remói a todo instante, na cidade cinza. Cada declaração de amor contida na garganta chora a si mesma nas esquinas. Cuidam das lojas de prateleiras vazias todos os gritos nunca dados. Pilhas e pilhas de esboços de cartas rasgados mendigam o que poderiam ter sido. Ah, quanta dor na cidade cinza!

Andar por lá é um misto de tristeza e respeito. A cidade cinza é a prova do quanto a humanidade é humana. Na brisa que sussurra, ouvem-se pai e filho que morrem calados, amantes que se perderam nos desentendidos, um cão que esqueceu de latir. Tristeza e respeito. Respeito e tristeza, porque a cidade cinza transpira sentimento, só que espremido, apodrecido. É sentir virado chorume.

Na cidade cinza não se chega nem se fica. Mas não é que nunca se visita. Todos a vêem uma vez. É a morte, a menor de todas as vezes e a mais curta de todas as horas. Ela nos permite apenas dois últimos desejos. Um mergulho no abismo negro que nos aguarda, e um breve sobrevôo nas torres e vilas de casas descascadas. Alguns choram, e deles se fazem as chuvas da cidade cinza.

Alguém já escreveu isso

A rosa é escrava de ser rosa, e eu de ser Bernardo.
Fosse eu Carlos Eduardo, e saberia escalar montanhas?

sábado, abril 07, 2007

No alto do morro

Lá no alto do morro, tem uma casinha pra se olhar pra vida. Vento e homens sobem sobem sobem, vão construindo e soprando castelinhos de areia que chamam de casas. Lá no alto do morro. Sabem que o alto é presente de Deus, dado e guardado no coração de cada um. O alto foi feito pra se olhar pro mundo; pra baixo, pra em volta... Mas principalmente pra olhar pra cima.

Olhar para cima e ouvir os sons: sangue correndo nas veias, células estalando. Quereres. Balançar ao vento é estar bem consigo mesmo. Lá no alto do morro, beira-mar, folha de caboclo-chorão e de aroeira. Faz coração de pedra virar poeta, faz insone virar sonhador. Faz perder a vergonha de gostar. Amor não vem de Deus nem dos homens; amor vem do de-repente.

Quem nunca subiu numa casinha no alto do morro não sabe o que é estar vivo, não senhor. Ou pelo menos não sabe que sabe. Porque toda vida o que quer é subir, e Deus está no céu, a morte debaixo da terra.

sexta-feira, abril 06, 2007

O dito do Dito

- Mas Alice, eu já disse que não sou mitômano!

Vocês podem muito bem imaginar o alvoroço que essa exclamação causou naquela família interiorana. Especialmente se eu disser que se trata da primeira frase pronunciada pelo pequeno Expedito de Jesus dos Santos, o Dito.

A mãe soltou algo como um grunhido. Teria preferido gritar de prazer e guardar o momento num cantinho especial do coração – como todos fazem nessas ocasiões. Só que o pensamento humano não é tão veloz quanto gostamos de crer; no ínfimo tempo que separa o ouvir do entender, seu cérebro já mobilizava o corpo para aquela explosão de alegria que repete incessantemente “Ele falou! Vocês ouviram? Ele falou!”. Mas então caiu em si. “Ele falou! Vocês ouviram isso? Ele falou!” mais “Que p. é essa?!”, dividido por três e noves fora, dá “algo como um grunhido”, como está dito no início do parágrafo.

Mas o dito do parágrafo anterior não é importante. O importante é o dito do Dito, que olhava com a cara de nada, típica de bebês cínicos como ele. Depois de alguns instantes de silêncio, a parentada toda se aproximou, curiosa. Uma bela de uma coincidência, o Dito falar pela primeira vez no seu próprio aniversário. Mais alguns instantes de silêncio. Parece que esperavam que o moleque se repetisse, ou pior, continuasse com um discurso de 14 horas. Mas só o que o Dito fez foi chorar um pouco, porque o Tio Né chegou perto demais. Ele sempre chorava perto do Tio Né.

- Isso é coisa do Cramunhão, né... – sentenciou, sem gravidade na voz, o Tio Né. Na verdade, ele se chamava Joaquim. Mas a maioria das pessoas só o conhecia pelo apelido, marca registrada do seu conformismo fatalista.

- Arre! Não fala besteira, mano, que o Demo num entra nessa casa! – retrucou o pai - Que foi que ele disse mesmo, mulher?

- “Mas Alice, eu já falei que não sou ‘mitomo’” – respondeu na frente um primo enxerido.

- Foi “disse”.

- Hein?

- “Disse”, e não “falei”.

Como ninguém entendeu nada desse breve diálogo, a conversa começou a se fragmentar dentro da sala. A família Jesus dos Santos inteira discutia o que o Dito tinha dito. O burburinho tratava não só da reconstituição da frase original, mas de variadas outras questões: “Quem será Alice?”, se perguntavam alguns; outros planejavam como fazer o Dito falar de novo; algumas tias beatas tentavam recordar se havia uma passagem bíblica semelhante; três ou quatro agregados foram buscar um dicionário na casa do padre; o que queriam mesmo era buscar o padre, influenciados pelo que dissera o Tio Né.

A noite foi passando e a conversa também. Os agregados voltaram de mãos abanando; o padre viajara. Alguém teve a bem-vinda idéia de jantar. Já que não conseguiam entender, queriam ao menos esquecer. Mas o mal-estar permanecia, como uma grande bola de chumbo, no meio da sala.

A situação já ficava insuportável quando um tio distante, com fama de instruído, observou que o caso não era tão extraordinário assim, afinal. O importante não é a primeira frase do bebê, mas a primeira palavra, que, convenhamos, não foi nada extraordinária. Ouviram-se murmúrios de aprovação. A credibilidade do tio, somada ao cansaço de todos, acalmou a família toda. Ou melhor, quase toda. O Dito começara a chorar.

segunda-feira, abril 02, 2007

Quarto de coisas

Juntei todas as coisas que a vida me permitiu juntar. Guardei todas as marcas de todos os ventos que já ventaram. Todas as noites me debruço sobre a experiência de vidas longas, e nada que foi nesse mundo enorme me é desconhecido ao toque do olhar. Pense em mim como um colecionador de tudo o que não é meu.

Não sou mais do que um catador de papéis, e já sou velho. Guardo a reunião das coisas e dos seres que me passam diante dos olhos. Nada vivi, mas tudo vi.

Coleciono um passado que me atravessa e me ofusca; tenho uma casa maior do que meu coração.