terça-feira, outubro 30, 2007

Bárbara

"Não havia dúvida, porém, quanto ao que exigia: todo o ouro e toda a prata da cidade e entrega de todos os escravos de sangue bárbaro. 'Que é que nos deixa, então?' - perguntou o emissário. 'A alma' - respondeu ele".



Fel de bronze e ferro, cerra os olhos dos homens; lhes escancara a carne.

Intempestiva e inexorável,
da terra aos confins
leva seus lírios negros

E espolia-nos a todos. Flamejante o seu cabelo
em ruínas faz os olhares do mundo.

Passa com vento, chuva, fogo, sangue; e cheiro e caminhar de fêmea.

Indefesos, lhe chamamos selvagem. Que sitia e incendeia, vence nossas torres e bastiões. Carnificina-nos.

Leva seu ouro e sua prata, seus espólios manchados de gozo. Impõe um tributo silencioso, de respeito e gratidão ignóbil. Porque nos deixa vivos.

Sim, lhe somos gratos. Pois o único momento em que a Terra - essa coisa inanimada e burra - sabe-se viva é quando passa a devastação, e os campos só nos têm amizade quando lhes é ceifado o grão, com a foice sedenta de pescoços. Da mesma forma, nos vemos vivos, quase imortais, depois que ela se vai. É que da sua boca em disparada pinga o nosso sangue, espalhando-se por todos os cantos, e assim fazemos parte de tudo o que há.

domingo, outubro 21, 2007

Bandolim

Toca assim o bandolim; sei-me só.

Andança por uma tarde escurecida, valsa sem par, ourives da solidão. Toca assim o bandolim. Atesta-me a vastidão da planície deserta, faz-me ventar e ecoar num vale; dá-me frio.

Quem disse que às cordas importam as notas que vibram? A música é o espelho da vida: toda beleza é acidental, e solitária. Quando toca assim o bandolim, isolar-se é apenas aceitar.

domingo, outubro 14, 2007

Se quiseres, fica

Imprecisão e sobressaltos. Eterno perguntar-se. Para aqueles devotam seus olhares aos detalhes; cujos olhares involuntariamente atentos percebem significâncias tão notáveis quanto quase inexistentes; que ouvem gritos no maior dos silêncios; para esses está garantida uma vida de incertezas. Pois se é fato que nos detalhes se escondem grandes verdades, não é menos certo que a sutileza é a mãe da sombra sem dono, da palavra sem boca, das certezas sem pé. O caminho desses é o do quase saber. Não conseguir olhar direto pro sol. Gente assim é como se só enxergasse o mundo com o rabo de olho.

É no cantinho de nossa humana visão que se escondem o nada e também os grandes tesouros. É como se nada de realmente belo pudesse ser visto e encarado de frente. As coisas que realmente valem a pena não se nos revelam, são teimosas e brincalhonas. Que mundos de possibilidades se abrem num simples toque entre duas pessoas! Os olhares são quase rudes perto da insinuação contida no comportamento de mãos quando se encontram, ou mesmo quando se soltam. É como se tudo na gente falasse abertamente, tagarela, por apenas um milésimo de segundo. "Ouvi isso mesmo?" Ah, quantas promessas perdem-se por aí, largadas no asfalto, porque não foram ouvidas essas vozes sem peso, sem ar? E quantas outras tornam-se uma ridícula decepção, pois eram apenas impressões, soltas, excesso e lixo de realidade?

Nunca dorme direito, quem observa o mundo desse jeito, com lentes de aumento. Está sempre indo do riso ao choro; num dia garimpa um diamante; noutro, colhe orgulho ferido. Mas nunca, nunca abre mão do seu modo peculiar de ver e viver. Não, não esquece. Essa pessoa não esquece aquele olhar subitamente desviado no domingo, ou aquela inexplicável momentânea timidez na despedida daquele sábado de verão. Não esquece jamais a mão que largou a sua, quem sabe a dizer: "se quiseres, fica a segurar-me, que estarei feliz".

quarta-feira, outubro 10, 2007

Uma carta

Rodolfo,

Por favor, me leia com atenção, e me dê a sua opinião.

Acabo de dar vazão a uma faceta muito sinistra minha. Enviei - trêmulo de prazer - um e-mail muito cruel e injusto para a Clarissa. Não acredito em metade do que escrevi e, principalmente, não acredito em absoluto no tom que dei às palavras. Foi um puro e simples exercício de crueldade. E também um exercício de autoflagelação.

Sim, porque, enquanto escrevia, desejava uma resposta tão cruel quanto, ou então a decepção total (que foi o que acabou acontecendo). O que leva um ser humano a deleitar-se com essas coisas, especialmente em se tratando da pessoa mais importante e amada da vida dele? Que mistério assustador. É aterrorizante saber que eu posso sim ser um monstro, um açougueiro psicopata; porque foi essa a sensação que tive; um eremita emocional, agressivo, de olhos injetados, e com uma boa dose de tragédia. Há uma literatice nisso tudo, quem sabe? Um desejo de superar a mediocridade e arenosidade da vida com situações dramáticas? É difícil para alguém como eu - cujo endereço é a lua - se deparar com o fato de que a vida não é um romance, e sim uma responsabilidade. Assim, fria e imperdoável. A vida verdadeira não dá margem a sentir pena de si mesmo. É uma governanta severa e boa, que quer o dever de casa feito antes de permitir que as crianças sentem à mesa da felicidade.

Será isso?

Estupefactamente,

Alexandre

segunda-feira, outubro 08, 2007

Bruna,

Minha resposta a você foi muito incompleta e, por isso, insincera. Vale completá-la aqui mesmo, por que não?

Isso aqui tem o poder absurdo de me acalmar o espírito. Você não tem noção da disparidade de ânimo causada, do "antes/depois" que foram alguns textos desse blog pra mim. Nem todos. Talvez eu os conte nos dedos.

Me permitindo algumas reflexões viajantes: talvez ter um blog sirva pra mesma coisa que ter um cachorro; ou gritar no Grand Canyon. Sei lá.

Não sou sentimentalista com a literatura não, e pra mim mágica não existe. Mas é inegável que esse negócio aqui às vezes faz os momentos de extrema solidão serem suportáveis. Solidão de todos os tipos: solidão por opção, por teimosia, por desespero. Passando por essa porta, é possível que evaporem, virem éter, um cheiro incômodo, uma poeira debaixo do tapete. Dá pra entender?

domingo, outubro 07, 2007

A navalha e a carne

Não, a lâmina que corta e a carne que sofre não são diferentes. Não é que elas não saibam uma da outra, e - céus - não atribuam crueldade ao pobre fio da lâmina que violenta a inocência da pele rasgada. Porque a navalha sabe bem o que é a dor, e já foi carne, mole, quente e cheia de sangue a espirrar; num golpe de vento, endureceu, afiou-se e refletiu - metálica - o céu tempestuoso. E a carne, pobre despedaçada e mutilada, sabe bem o que é ferir, pois já foi tão fria e tenaz quanto qualquer aço; caiu a chuva, amoleceu, encheu-se de fluidos e nervos que gritam. O sangue sempre a escorrer pela calçada, nunca novidade para ninguém. E ainda assim a navalha corta e a carne esperneia. Serão tão estúpidas a ponto de esquecerem tudo o que já sofreram? O universo é uma crueldade só, fazer coisas que não sabem o que são... E se houvesse uma navalha de carne, e uma carne de frio metal? Por que a insistência eterna num carrossel sangrento e oco, repetitivo, emburrecedor? Onde estão as raposas desse mundo, e a experiência que faz a prudência? Vergonha! A carne devia ter vergonha do sangue que verte, assim como a navalha se embaraça de sua ponta pungente. Pede perdão pelos músculos partidos, desgraçada! Recolhe teus restos mutilados, e ai de ti se deixares o cheiro da tua pusilanimidade no ar! Limpa o palco, que os ares já mudam, e logo será a tua vez de cortar e desculpar-se. E tu, navalha infeliz? Arranca-te do rosto essa expressão de horror e culpa, como se nada soubesses do mundo! Enxuga o sangue que já coagula em tuas falsas faces de facínora e corre. Corre, sem olhar para os lados, e aproveita a tua metalicidade enquanto é tempo. Andem! Saiam ambas da minha frente, que me enojam!

Roda viva

O recomeço - todos sabem - é uma bênção. Esse clichê é que nem aquele móvel empoeiradíssimo, mas não sem o seu charme cinzento de quem já esteve limpo há uns cinco séculos. Tem gente que é alérgico a clichês; eu não. Espirro com poeiras e ácaros da vida real, não da vida metafórica.

Mas não é nem de recomeço que vim falar aqui. Eu sei na pele que a bendita linguagem e entendimento humanos inventaram a sensação de frescor de um reinício, da nova chance, do ano novo. Todos aqueles com idade acima de 1 ano conhecem bem a sensação. É uma concessão para jogar tudo embaixo do tapete e começar de novo. Começar a sujar e emporcalhar tudo de novo, os leitõeszinhos que somos (ou que podemos ser, pra não soar muito como um velho ranzinza que bate com a bengala em tudo o que é humano).

Mas pois. O fato é que a idéia de recomeço implica na idéia de circularidade. Como todos sabemos, círculos são redondos, circulares. Pois bem. Se tudo o que começa termina, por que o que o se renova não deveria também terminar? Acho que ninguém nunca pensou nisso, senão o Houaiss mostraria o termo "refim" entre a palavra "refilo" e o antepositivo "refin".

Baboseira, eu sei. Mas, cá pra nós, esse blog não é todo uma grande besteira, um "oco palavrório"?

Continuemos pois, a lamentação. Uma das muitas ironias dessa vida é que, ao mesmo tempo em que nossa visão cíclica das coisas nos dá alento, ela também nos afronta e exaspera, com a recorrente repetição de certas decepções e zombarias do destino. Porque, assim como uma moeda atirada dificilmente cairá em pé, a roda viva do mundo também tem a péssima mania de não ter lá muito equilíbrio em suas finas e atrofiadas pernas. O que está bem está suscetível ao desastre; o que está mal geralmente está tão cansado que prefere o ano novo chegar e trazer seus doces e suas pílulas milagrosas, como um Papai Noel doidão, vendedor de ácido lisérgico.

E assim sempre. Esse negócio de linearidade histórica acho que é um grande balela pra pensador vender livro. No fundo a gente ainda vê a existência como os antigos, e o tempo é uma grande bola de futebol, um bambolê, uma pizza giratória, um cachorro correndo atrás do próprio rabo, e quantas outras comparações circulares você quiser. Dizem as provas de física dos vestibulares: "desconsidere a resistência do vento e o atrito". Assim é a vida, nada pára o seu rodopio entediante, estonteante e - por que não? - às vezes inebriante. Giremos em torno de nossos próprios eixos, resignados, portanto. Ou isso, ou nada.

terça-feira, outubro 02, 2007

Paixão de ficção

O grande problema dos personagens fascinantes é que eles não existem. As almas estonteantes, as inteligências admiráveis e ofegantes só nos fazem lamentar que a vida seja tão imprevisível. Pois na ficção tudo está no script. Lorde Henry Wotton nunca é pego de surpresa nas suas palestras corruptoras, pois já sabe exatamente todas as reações de seus inventados interlocutores. O Lobo Larsen não tem de lidar com ponderações inopinadas do "hóspede" de sua embarcação, pois tanto um como outro são frutos de uma mente em devaneio criativo.

Não acredito na Clarice Lispector quando ela diz que não sabe o rumo que suas histórias vão tomar quando começa a escrever. Sim, elas vão se desenvolvendo à medida em que as palavras são pintadas, mas isso não significa surpresa, por mais que a mente sonhadora do escritor goste de pensar que o personagem tem vida própria.

Não, a Hermínia do Lobo da Estepe é irresistível e suas palavras são mágicas só porque ela é mimada pelo autor. A amante tcheca de Franz - Sofia? Seu nome agora me escapa - é indomável pois todos os outros personagens do Kundera já foram domados por ele. Brás Cubas é tão irônico consigo mesmo porque não existe, e sua própria morte é uma farsa. E não acho que eu poderia conhecer um jagunço com a poesia simples de Riobaldo.

Poderia continuar com uma infinidade de personagens cujo espírito e dom da palavra são estelares. São todos uma grande gargalhada frente à mediocridade humana. Porque afinal, convenhamos, somos todos mentes medianas, com delírios de genialidade. Mesmo que a genialidade não seja nossa, e sim uma admiração pelo brilhantismo alheio, ainda assim ela é delirante.

Isso tudo pode ser muito triste. Porque jamais - e isso reconheço que é puro pessimismo - irei entrar em um bar alemão com pensamentos suicidas e encontrar uma formosa e misteriosa moça que, com sua perspicácia irretocável, irá soprar a cor de volta à minha vida. Nunca nunca uma mulher terá uma resposta na ponta da língua para cada pergunta minha, a ponto de me impressionar o espírito a ferro em brasa.

Ou será que essa mulher existe? Ela seria a perdição de qualquer homem na face da Terra. Ela e tantas outras personagens femininas da vasta imaginação humana. Nunca conheci ninguém de carne e osso que as superasse em mistério e brilhantismo. Já perdi a conta de mulheres que descobri apaixonantes com um simples cruzar de olhos, mas não é a mesma coisa. Nunca nenhuma delas me fez temer pela perdição da minha própria alma. Nem acho que eu jamais terei esse efeito sobre ninguém. Efeito esse que um mero espantalho descrito em caracteres impressos pode conseguir com um estalar de dedos do seu teatrinho inventado.

Ora, paciência. Enquanto isso vamos sonhando com o roçar nos nossos joelhos da saia de uma Hermínia ao levantar-se; com a beleza indizível de uma Helena; com a radiante sensibilidade aprisionada e incompreendida de mil putas solitárias e desprezadas da nossa literatura. É só o que podemos fazer, esticar os braços para alcançá-las e só encontrar o frio papel impresso nas gráficas desse mundo afora.