domingo, abril 30, 2006

Coisas que só a chuva...

Hmm, sabe quando a gente pára no meio da rua e não tem mais certeza de que o que a gente pensa é a gente que pensa mesmo? Pois é, dura pouco, não é? São momentos raros e dolorosos, nos quais toda a nossa vaidade é posta à prova. No entanto, como ninguém é de ferro, nossa vaidade geralmente é à prova de balas. Dura pouco, então. Mas o suficiente pra manchar o funcionamento do cérebro durante o resto do dia. Faça uma tomografia depois de uma coisa dessas. Médico, pensativo, coça a careca: “Uma mancha roxa aqui... Roxa?!”.

Pois é. Mas no dia seguinte, passa. Sempre passa, talvez até antes disso. De repente, quem sabe, não tem mancha roxa nenhuma. Médico, sorridente, alisa as madeixas: “Senhor (a), nunca vi um cérebro em mais perfeitas condições.”. E você volta pra casa, ou pra conversa, e continua numa boa, soltando opiniões e, se você é dado a isso, até aforismos. A roda de bate-papo sorri, ou protesta, mas o resultado é sempre positivo. Não existe má verborragia, assim como não há má publicidade.

Mas olha só. O Totonho esperava o 267 debaixo de chuva. Que dia para ir à Cidade! Totonho era só apelido. Por mais que a criatividade brasileira para corte e colagem de nomes seja fascinante, ela tem os seus limites. Totonho é apelido de Antônio, carioca, carpinteiro, 42 anos. Esperava o ônibus, e refletia sobre o noticiário, com o cabelo grisalho encharcado, caindo-lhe sobre a sobrancelha. Tinha toda uma série de opiniões sobre tudo de que tomava conhecimento. O Lula, o mensalão, o Bush, o Fluminense, a Igreja, até o casamento do Ronaldinho. Era feliz com elas. Sim, eram todas opiniões humildes, ele sabia que não era capaz de coisas muito mais do que simples. Até a sua carpintaria era simples, reta, sem muita enrolação. Mas eram dele, e o completavam. Porque opinião, por mais idiota e incoerente que seja, tem que existir. Não por determinação moral daquele que escreve esse texto, mas porque eu acho que é fisicamente impossível que não exista. Sei lá, opinião é aquela coisa branca que veda cano. Só que na cabeça. Se não tiver, vaza massa cinzenta. Imagine massa cinzenta vazando. Morre, não morre? Então.

O que aconteceu é que, enquanto caíam gotas de chuva da ponta do seu grande nariz, o Totonho olhou para o seu grande nariz; e pronto. Resolveu pensar um pouco sobre si mesmo. Assim simplesmente, uma metafísica bem singela e humilde. Começou se perguntando por que é que ele tinha de ter um nariz tão grande. Daí pro “de onde viemos, pra onde vamos?” é um pulo. Em dia de chuva, meu amigo, acontecem milagres intelectuais. E nada do 267 passar. Quem pega o 267 sabe. O 267 foi feito pras pessoas pensarem na vida mesmo. Porque pra pensar na vida precisa-se de tempo, e o 267 é a personificação do tempo. Do muuuuito tempo.

Eita madeira, que estou divagando que nem mariposa que invade pela janela! Mas tudo bem, ele não pegou o ônibus ainda. Coitado, mal sabia que o 267 enguiçara no Mato Alto. Teve, e isso anulou a impaciência rotineira da espera, uma súbita sensação de ser idiota. Não conseguiu responder a uma pergunta aí, não importa qual seja; uma das bem escabrosas; desejou ter estudado mais. Depois pensou que o pessoal da televisão tinha estudado mais. E depois pensou na Fátima Bernardes conversando com Deus, tentando argumentar, toda fofa como só ela, como o sentido da vida proposto por Ele não era lá muito bom. Pois é, e aí ele meteu uma palavra que aprendera há muitos anos atrás, mas que só recentemente começara a usar mais, depois que leu uma matéria no Extra: e o sentido da sociedade, essas coisas? Assim como a vida, tem um sentido né? Tem que ter. Pelo menos as regras e tal, pra comunidade viver melhor. O que é certo, errado. Nossa, que o Totonho tava demais, debaixo daquela chuva! Quem passasse, devia achar que estava drogado, ou maluco. Olhar vidrado, um sorriso meio desfeito congelado no rosto, água pingando. Mas estava só pensando, coitado. Isso é cara de pensar! A água é só pra compor o cenário.

Riu pra si mesmo, lembrou de novo da Fátima Bernardes conversando com Deus. A diferença dela pra ele, além de alguns milhares de reais, era que ela falava na televisão, e ele não. Tinha aquele outro que falava difícil, o Jabor. Ele é exemplo melhor, porque ele sempre fala sabendo das coisas. Ele sim deve conversar com Deus. A Fátima, uma sobrinha dissera, só lê numa telinha o que tem de falar. Mas mesmo assim ela é estudada, lida, deve ter opiniões também. Talvez ela ensine pro Jabor. Mas quem disse que eles sabem das coisas? Eles só parecem que sabem, porque estão lá engravatados. Mas é opinião, tudo é opinião.

Eu tenho as minhas convicções também, mas será que a minha opinião é a minha mesmo? Ora bolas, o Totonho nunca foi na Palestina. Nunca viu um judeu, a não ser aquele sovina do Alberto, que não era judeu porra nenhuma, mas se dizia judeu. Onde já se viu judeu preto? Mas mesmo assim o Totonho tinha uma opiniãozinha qualquer sobre a tal guerra. E aí ele lembrou da improvável cena da Fátima conversando com Deus, e se sentiu magrinho, magrinho. Lia jornal sempre, sempre via TV, escutava rádio. Já leu até um ou dois livros, gostava de cinema. Essa porra toda é a cabeça dos outros cuspida pra cima de mim! Se sentiu quase sumindo do mapa, de tão fino. E a mancha roxa crescia dentro do seu cérebro mole de tanto sacudir em ônibus. O pior de tudo é que ele não nem tinha alternativa. Era o cuspe da cabeça dos outros ou o completo vácuo. Ele nem iria entender nada quando o Alberto falasse que era filho de “Israélicos”. Que porra é essa de judeu, ele iria se perguntar. Mas por causa da Fátima ele sabe o que é um judeu. E judeu não é preto. Ou será que é?

Caiu sentado no meio-fio. Puta que pariu, será que judeu é preto mesmo? Agora ele já não sabia de mais nada. Já não tinha mais “cara de pensar”, como há alguns minutos. Tinha cara era de maluco mesmo. Sabe desenho japonês, que quando o cara morre o pontinho preto do olho fica pequenininho? Então, o olho do Totonho ficou assim; mas ele não morreu não. Viu que tudo que ele pensava sobre o mundo vinha de esquisitos sinais desenhados sobre papel, ou então sob a forma de sons articulados, e imagens que reproduziam o que seus olhos viam. Nada vinha de dentro dele mesmo. Não tinha nada pra coisa branca que veda cano vedar. Nadinha. Nem tinha o que a mancha roxa manchar. Sentiu a cabeça leve, juro; quase flutuante. Levantou, com olhos que nem desenho japonês ainda, atravessou a rua vazia, balbuciando incoerências. E nada do 267 passar.

sábado, abril 29, 2006

Manel e seu coração

Olha que inusitado. O Manel aquele dia acordou querendo dar um abraço. Tem diferença. Receber um abraço todo mundo precisa de vez em quando. Uns, mais desesperados, precisam todo dia. Aquele dia o Manel acordou e precisou diferente. Em quem, ele nem sabia. Queria era abraçar, talvez até beijar a testa desse qualquer-um sem nome. Eu nunca vi alguém acordar assim tão doce, e o Manel não tinha nada de doce. O Manel era careca e meio fechadão, só sorri de piada suja. Seu melhor amigo é a cerveja, é solteiro, torce pelo Flamengo. Se ainda fosse pelo América... Seria um sinal de que ali dentro tinha uma alma saudosista, poética e sensível. Mas não, era Flamengo. Garra, urubu, cerveja no sofá mesmo, coçando a virilha. Discutia horas com o vizinho tricolor.

O engraçado era que se o vizinho tricolor batesse na porta naquele momento, o Manel tascava-lhe um abraço. O vendedor de aipim também. Ia ficar tão surpreso que as mandiocas todas iriam cair no chão. Abraço do Manel é forte. Só quem já sentiu foi um ou outro parente, no enterro do pai. Mesmo assim foi abraço duvidoso, abraço no outro mas que é em si mesmo. Abraço em espelho, porque espelho mesmo não dá pra abraçar.

Tenho que repetir que dessa vez era diferente. Manel ali, no banheiro de azulejos azul-claros, escovava o dente e sentia aquele apertinho no coração. Aquele que a gente sente quando não alcança algo que está bem perto da gente. Coração do Manel é grande; coração de boi, cavalo, esses bichos fortes e que só olham pro próprio estômago. Mesmo assim apertou, de solidão. Mas não solidão de carência de atenção, de amor. Não: foi é a pior solidão que existe. A solidão de estar no meio de um monte de gente que quando se toca pede desculpa; aquela que o único culpado é a gente mesmo, porque se está sozinho é porque passa a vida toda só dando tapa nas costas e fazendo brincadeira. Solidão de sentir frio.

Manel tinha quase 50. Tomava seu café puro, sem açúcar, e o pão com manteiga, dormido. O aperto no peito não parava. E isso tinha que vir agora, depois de meio século de vivência? Manel podia muito bem ter passado batido, até o fim, incólume, só fazendo piada suja. Alguns até riam delas. Tinha graça, o Manel. Pra ele, português era máquina de fazer burrice, e o Joãozinho o filho que nunca teve. Mas já divago. O que o Manel lamentava, entre as dificultosas mastigadas no pão do dia anterior, era que ele poderia dormir sem essa. Ou melhor, acordar sem essa. Porque o Manel, veja – e isso é importante -, nunca foi um cara infeliz. Gordo e peludo, talvez. Mas infeliz, nunca. Imagine então que o Manel morre aos 62 anos, de um bom e gostoso ataque cardíaco, que te leva embora sem nem dar tempo de gritar “ai!”, quanto mais de maldizer a morte. Manel teria ido feliz; quem sabe no dia anterior não teria inventado uma nova piada sobre travestis? Sessenta e dois anos de vida, muita cerveja e vitórias do Flamengo, amizades de domingo e de segunda-feira também.

Mas não. Tinha que acordar assim aquele dia, mesmo sem ter bebido no anterior. A sua gorda vida tinha que ter um calombo justo agora, quando já se encaminhava pra parte da descida. O pior era que não tinha explicação. Alguma. Sentado na cozinha, olhar preto vidrado no nada, não tinha motivo nenhum praquilo. E doía mais apertado o coração. Quis até ligar pra mãe; não sei por que não o fez. Vergonha, né? Tem gente que não tem vergonha de falar putarias em público, mas tem vergonha de abraçar mãe e pai. Vá entender. Manel, repito, não ligou. Ligou pra ninguém. O aperto no peito foi tão forte que ele quase chorou. E olha que nem era dia nublado.

Nesse dia o Manel não foi trabalhar. Dia seguinte também não. A dor no peito se espalhou pro braço, e aí já viu, né? Pois é, enganamo-nos – Eu e Manel. Ele morreu às 08:43 do dia 7 de março, uma terça-feira. Morreu como queria morrer aos 62 anos, sem nem saber direito o que aconteceu. O problema é que foi-se embora na ignorância, achando que era melancolia o que lhe afligia. Não sei se é triste ou engraçado. Essa vida...

domingo, abril 23, 2006

Enquanto isso nesse blog aqui...

Rua poeirenta, sol forte; silêncio. Muito vento. Passa uma bolinha de palha, rolando, feliz. Ser humano que é bom, nada.

quinta-feira, abril 20, 2006

Fotograma

Olhou atentamente naquele espelhinho sujo que todo mundo tem quando procura um suposto defeito na própria alma. Sentou na cama, cansado, não viu nada de errado. Nada. Se fumasse, acenderia um cigarro agora. Se bebesse, encheria a cara. Se conseguisse dormir...

Acho que todo mundo já passou pelo parágrafo acima alguma vez na vida. A diferença é que alguns fumam, outros bebem, e quase todo mundo dorme. O rapaz aí em cima não. Se você tiver a paciência de esperar, uma, duas, cinco horas, vai ver que ele nem se mexe. Que porra é essa de dar tudo errado? Quer dizer - ele corrige-se -, não é que dê tudo errado. É que antes de qualquer coisa mesmo esboçar "dar" alguma coisa, já não dá mais. Entende? Não, né. Nem ele mesmo, coitado. Essa idéia passou muito rápida pela cabeça dele pra que ele pudesse domesticá-la. Fica nisso aí, você faz o que quiser da idéia.

Aí, eu não disse? Ainda está ele na mesma posição. Até o abajur na mesinha de cabeceira - aceso não sei por que, já que é dia - mudou de posição. ("Venta muito." É a desculpa que encontrei pra fazer um objeto inanimado mudar de posição). E ele lá, nadando no nada. Nada mesmo, porque já até desisitiu do espelhinho sujo. Sabe de uma coisa? Virou foto. É isso, boa imagem. O rapaz virou foto, por isso que não se mexe. Tadinho.

quinta-feira, abril 13, 2006

À Noite e Eu

Essa noite eu não durmo não. O que é o sono perto da imensidão do mundo? Essa noite, a falsa quietude da cidade pulsa nas minhas têmporas: tum, tum tum; é quase uma dor de cabeça. Olhe pela janela, leitor: o silêncio da noite carioca é um convite à insônia. Me imagino morcego, voando sobre os telhados do Rio de Janeiro; ou Sydney, Havana, Riad: os morcegos são os mesmos.

As cores das luzes da cidade sempre fascinaram esse morcego aqui. Os raios amarelos das lâmpadas de mercúrio, os vermelhos das dos freios e o verde das fluorescentes: todas elas, refletidas na carroceria dos carros, me fazem ainda mais morcego. Sobrevôo o branco esverdeado da iluminação de um posto de gasolina, e ponho-me a pensar: tentativa de frustrar a escuridão? Que nada. Todas as luzes são um brinde, uma coroação à Noite. Enfeitam-na com frios adornos. Silenciosos, porque luz não faz barulho. E aí o silêncio nos convida a sorrir pra dentro, aquele sorriso tão negro quanto a própria noite. Sorriso negro sim, só nosso. Daqueles que não se compartilham e é bom assim. Se você nunca sorriu assim, vá fazer outra coisa: esse texto é para os gourmets da solidão noturna.

Tum, tum, tum. Deixo-me vestir de negro e finjo que o mundo dorme, para que ninguém me veja e eu seja o senhor de mim mesmo. Vôo, não olho pro céu; é pra cidade que me atraio; mergulho numa avenida qualquer. Vazia, conforme eu previra – ou comandara. Empoleirado em um velho outdoor, divirto-me com o sinal vermelho, verde, amarelo. Nenhum carro passa, nem vai passar, porque eu disse que não. Só quem passa é o vento, levando três ou quatro arrepios de espinha.

A brisa da noite carrega também papéis – escritos, impressos, pintados... Essas coisas diurnas. Em pequenos redemoinhos, eles dobram uma esquina próxima. O vento é bom pra passar essas coisas rápidas pela nossa vida. Logo somem.

Ali perto, um som de ônibus parando. Ou bem longe. Nessas horas escuras as distâncias enlouquecem. Som mesmo, mas não quebra o silêncio; é concessão minha nesse teatro de solidão. Em algum lugar, o ônibus parou e chiou. Mas é lugar nenhum. Em lugares nenhuns é que os ônibus param nessas horas tão madrugadas. Só me asseguram de quanto estou longe de tudo. O motorista fantasmagórico espera, impassível, o sinal abrir. Amarelo, vermelho, verde... Há que se dar um mínimo de verossimilhança às nossas imaginações.

Levanto vôo de novo. É dos telhados que realmente gosto. Imagine poder subir 100 metros acima de uma metrópole e gritar a todos pulmões? Há delícia maior? Pois esse morcego pode tudo. Brado sobre a cidade teatralmente adormecida. Obviamente, ninguém desperta. O Rio de noite é só eco. Meu sorriso negro alarga-se; vôo em direção ao mar.

Tão alto e macio quanto o céu é o mar noturno. E eu sei de onde vem o mar. É tantas vezes a noite caindo; de novo, de novo. O mar é o acúmulo de todas as noites que já existiram na Terra. É isso que nos conta aquele jeitão escuro, a superfície áspera e aquele cheiro salgado. E é para ele que me dirijo agora; de morcego para golfinho, me deixo livre no ar – cair é melhor do que mergulhar. O mar me aceita, e eu me deito no seu colo indefinido. Ali, no meio do nada, nada se enxerga, nada se ouve; ali, quase nada se sente, a não ser as têmporas pulsando o velho “tum, tum, tum”. Ali se sorri pra dentro. É... O mar, sem dúvida, é filho da Noite.

Onde que vai parar essa viagem? Oras, a resposta é óbvia: na aurora. Inevitavelmente, o sol vai raiar. Em minutos, talvez; horas, tomara. Vai ser tempo de voltar pra casa empapado de maresia, e com um olhar meio torto. Nada mais triste do que o café-da-manhã depois de uma experiência dessas. O cheiro de pão nessas horas me enoja; aquele cheiro tão morno quanto a noite foi fria, que só serve pra me meter goela abaixo as frases “À noite, dorme-se. Nada de poesia. Está na hora de trabalhar.”. Como sim, tomo até leite junto. Levanto e vou viver o dia. Mas saio desconfiado, achando que o dia é que foi feito pra ser dormido.

Aí, na boa

Qualquer e-mail que começa com "SÉRIO!", "Não apague!", "É verdade!!!!" etc, está pedindo para ser apagado. Um motivo para cada exemplo: 1) Palavras inteiras em letras maiúsculas são um ótimo cartão de visita... pra jogar na lixeira. 2) Todo mundo sabe como a gente adora desobedecer uma ordem. 3) Me recuso a ler qualquer coisa de alguém que usa mais de 3 pontos de exclamação de uma vez.

Estou mau-humorado mesmo. É que a noite está quente. Noites foram feitas para serem frias, ora bolas. E tenho dito.

terça-feira, abril 04, 2006

Como se fosse ontem

O quarto é úmido, é dela. Antes de entrar lá, eu já sabia. O quarto é escuro, meio arroxeado, e a cama é de ferro. Sabia, sabia assim que vi os olhos grandes. Essa mulher é dona de um mundo só seu, uma masmorra, um cárcere abafado. Antes do primeiro “oi” eu já via a enorme e austera cama de casal, metálica, antiga, absoluta; sabia que era a cama dela e que ali não tinha volta. Quem nunca foi adivinho que atire a primeira pedra.

Uma pessoa prudente, portanto, jamais teria dito sim, jamais teria olhado nos seus olhos. Mas “prudente” é um adjetivo que só existe escrito; nunca vi homem nenhum estampá-lo. Fui mesmo, caminhei por entre prédios na madrugada, bebi licor com ela, e me vi refletido nos seus grandes olhos, me vi preso nos seus cabelos. Parece que já sabia de tudo que ia me acontecer. Mas então, eu me pergunto, algum dia de fato eu já fui pego de surpresa? Ou será que a gente sempre sabe o que nos espera? Tenho sempre a impressão de que sei exatamente pra onde estou indo, mesmo que, sei lá, caminhe de costas. Quando paro pra pensar nisso, é aterrorizante. Mas quando vivo e caminho, nem tremo. No viver, o que acontece é que, a adivinhação, a gente sente lá no fundo, daquele jeito que, se perguntar, a gente não sabe responder. Mas que a gente sabe o que é. Ah, como sabe!

E eu não sabia? Pois já via tudo, escrevia toda a História antes mesmo de acontecer. Caminhava do seu lado, hipnotizado pelos fartos cabelos pretos. Ela andava sem olhar pros lados, sorria pra si mesma, escondia-se nos seus cabelos. E eu perdido, contava as rachaduras da calçada. Pra que olhar pra ela, se eu já a tinha descoberto toda? Ela era dona daquele quarto úmido e arroxeado, ela era aquela cama metálica. Metal para quem é metal; madeira para quem é orgânico.

O dia começava a terminar, eram umas cinco da tarde. Dia nublado, todo manchado de cinza, sem sombras. Imagine quanta majestade ela tinha num dia desses! Alta, nem tanto quanto os prédios, mas mais imponente do que toda a avenida. Era mais aço do que todo o quarteirão. Dava pra ver nos grandes olhos, e ter certeza lá dentro dos cabelos. Eu: mil vezes adivinho.

É o tipo de coisa que só acontece uma vez na vida. A gente sobe as escadas, e já sabe quanto degraus têm. A gente sabe que porta que é, e a textura da cama. A gente sabe quantos minutos resiste até a coroa de fios negros nos sufocar. Só uma vez. Antes disso, só preparação. Só uma vez, então? É que, cada vez que acontece, começa uma vida nova. A alma velha fica lá, enredada nos fios negros da vez. E a gente vai indo, vindo, contando as rachaduras da calçada. Até que veja tudo de novo. Ela, olhos grandes abertos, cabelos negros e volumosos, sorriso escondido por eles. Ela convida antes mesmo de chegar perto. Eu aceito, recordando todas as mortes anteriores. Lembro de tudo que vai me acontecer. Como se fosse ontem.