sábado, abril 29, 2006

Manel e seu coração

Olha que inusitado. O Manel aquele dia acordou querendo dar um abraço. Tem diferença. Receber um abraço todo mundo precisa de vez em quando. Uns, mais desesperados, precisam todo dia. Aquele dia o Manel acordou e precisou diferente. Em quem, ele nem sabia. Queria era abraçar, talvez até beijar a testa desse qualquer-um sem nome. Eu nunca vi alguém acordar assim tão doce, e o Manel não tinha nada de doce. O Manel era careca e meio fechadão, só sorri de piada suja. Seu melhor amigo é a cerveja, é solteiro, torce pelo Flamengo. Se ainda fosse pelo América... Seria um sinal de que ali dentro tinha uma alma saudosista, poética e sensível. Mas não, era Flamengo. Garra, urubu, cerveja no sofá mesmo, coçando a virilha. Discutia horas com o vizinho tricolor.

O engraçado era que se o vizinho tricolor batesse na porta naquele momento, o Manel tascava-lhe um abraço. O vendedor de aipim também. Ia ficar tão surpreso que as mandiocas todas iriam cair no chão. Abraço do Manel é forte. Só quem já sentiu foi um ou outro parente, no enterro do pai. Mesmo assim foi abraço duvidoso, abraço no outro mas que é em si mesmo. Abraço em espelho, porque espelho mesmo não dá pra abraçar.

Tenho que repetir que dessa vez era diferente. Manel ali, no banheiro de azulejos azul-claros, escovava o dente e sentia aquele apertinho no coração. Aquele que a gente sente quando não alcança algo que está bem perto da gente. Coração do Manel é grande; coração de boi, cavalo, esses bichos fortes e que só olham pro próprio estômago. Mesmo assim apertou, de solidão. Mas não solidão de carência de atenção, de amor. Não: foi é a pior solidão que existe. A solidão de estar no meio de um monte de gente que quando se toca pede desculpa; aquela que o único culpado é a gente mesmo, porque se está sozinho é porque passa a vida toda só dando tapa nas costas e fazendo brincadeira. Solidão de sentir frio.

Manel tinha quase 50. Tomava seu café puro, sem açúcar, e o pão com manteiga, dormido. O aperto no peito não parava. E isso tinha que vir agora, depois de meio século de vivência? Manel podia muito bem ter passado batido, até o fim, incólume, só fazendo piada suja. Alguns até riam delas. Tinha graça, o Manel. Pra ele, português era máquina de fazer burrice, e o Joãozinho o filho que nunca teve. Mas já divago. O que o Manel lamentava, entre as dificultosas mastigadas no pão do dia anterior, era que ele poderia dormir sem essa. Ou melhor, acordar sem essa. Porque o Manel, veja – e isso é importante -, nunca foi um cara infeliz. Gordo e peludo, talvez. Mas infeliz, nunca. Imagine então que o Manel morre aos 62 anos, de um bom e gostoso ataque cardíaco, que te leva embora sem nem dar tempo de gritar “ai!”, quanto mais de maldizer a morte. Manel teria ido feliz; quem sabe no dia anterior não teria inventado uma nova piada sobre travestis? Sessenta e dois anos de vida, muita cerveja e vitórias do Flamengo, amizades de domingo e de segunda-feira também.

Mas não. Tinha que acordar assim aquele dia, mesmo sem ter bebido no anterior. A sua gorda vida tinha que ter um calombo justo agora, quando já se encaminhava pra parte da descida. O pior era que não tinha explicação. Alguma. Sentado na cozinha, olhar preto vidrado no nada, não tinha motivo nenhum praquilo. E doía mais apertado o coração. Quis até ligar pra mãe; não sei por que não o fez. Vergonha, né? Tem gente que não tem vergonha de falar putarias em público, mas tem vergonha de abraçar mãe e pai. Vá entender. Manel, repito, não ligou. Ligou pra ninguém. O aperto no peito foi tão forte que ele quase chorou. E olha que nem era dia nublado.

Nesse dia o Manel não foi trabalhar. Dia seguinte também não. A dor no peito se espalhou pro braço, e aí já viu, né? Pois é, enganamo-nos – Eu e Manel. Ele morreu às 08:43 do dia 7 de março, uma terça-feira. Morreu como queria morrer aos 62 anos, sem nem saber direito o que aconteceu. O problema é que foi-se embora na ignorância, achando que era melancolia o que lhe afligia. Não sei se é triste ou engraçado. Essa vida...

Um comentário:

Anônimo disse...

É triste E engraçado, se é que não se tratava de comentário retórico.