terça-feira, abril 04, 2006

Como se fosse ontem

O quarto é úmido, é dela. Antes de entrar lá, eu já sabia. O quarto é escuro, meio arroxeado, e a cama é de ferro. Sabia, sabia assim que vi os olhos grandes. Essa mulher é dona de um mundo só seu, uma masmorra, um cárcere abafado. Antes do primeiro “oi” eu já via a enorme e austera cama de casal, metálica, antiga, absoluta; sabia que era a cama dela e que ali não tinha volta. Quem nunca foi adivinho que atire a primeira pedra.

Uma pessoa prudente, portanto, jamais teria dito sim, jamais teria olhado nos seus olhos. Mas “prudente” é um adjetivo que só existe escrito; nunca vi homem nenhum estampá-lo. Fui mesmo, caminhei por entre prédios na madrugada, bebi licor com ela, e me vi refletido nos seus grandes olhos, me vi preso nos seus cabelos. Parece que já sabia de tudo que ia me acontecer. Mas então, eu me pergunto, algum dia de fato eu já fui pego de surpresa? Ou será que a gente sempre sabe o que nos espera? Tenho sempre a impressão de que sei exatamente pra onde estou indo, mesmo que, sei lá, caminhe de costas. Quando paro pra pensar nisso, é aterrorizante. Mas quando vivo e caminho, nem tremo. No viver, o que acontece é que, a adivinhação, a gente sente lá no fundo, daquele jeito que, se perguntar, a gente não sabe responder. Mas que a gente sabe o que é. Ah, como sabe!

E eu não sabia? Pois já via tudo, escrevia toda a História antes mesmo de acontecer. Caminhava do seu lado, hipnotizado pelos fartos cabelos pretos. Ela andava sem olhar pros lados, sorria pra si mesma, escondia-se nos seus cabelos. E eu perdido, contava as rachaduras da calçada. Pra que olhar pra ela, se eu já a tinha descoberto toda? Ela era dona daquele quarto úmido e arroxeado, ela era aquela cama metálica. Metal para quem é metal; madeira para quem é orgânico.

O dia começava a terminar, eram umas cinco da tarde. Dia nublado, todo manchado de cinza, sem sombras. Imagine quanta majestade ela tinha num dia desses! Alta, nem tanto quanto os prédios, mas mais imponente do que toda a avenida. Era mais aço do que todo o quarteirão. Dava pra ver nos grandes olhos, e ter certeza lá dentro dos cabelos. Eu: mil vezes adivinho.

É o tipo de coisa que só acontece uma vez na vida. A gente sobe as escadas, e já sabe quanto degraus têm. A gente sabe que porta que é, e a textura da cama. A gente sabe quantos minutos resiste até a coroa de fios negros nos sufocar. Só uma vez. Antes disso, só preparação. Só uma vez, então? É que, cada vez que acontece, começa uma vida nova. A alma velha fica lá, enredada nos fios negros da vez. E a gente vai indo, vindo, contando as rachaduras da calçada. Até que veja tudo de novo. Ela, olhos grandes abertos, cabelos negros e volumosos, sorriso escondido por eles. Ela convida antes mesmo de chegar perto. Eu aceito, recordando todas as mortes anteriores. Lembro de tudo que vai me acontecer. Como se fosse ontem.

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