domingo, maio 28, 2006

Piadinha em falsete

Ela-lírico disse a Eu-lírico que o amava. Mas por trás do cromaqui, Ele-lírico fazia a festa. Eu-lírico descobriu; estapeou Ela-lírico, que, envergonhada, não viu mais ninguém. Ele-lírico foi tirar satisfações e apanhou também. Nós-lírico acreditou em tudo e ficou chocado. Até que Eles-lírico chegou e explicou: “Calma, minha gente, que isso é ficção”.

Sorriso em oito linhas

Sabe quando você vê, lá longe, lá longe, onde tudo ainda são só manchas de cor, surgir a mais grata surpresa, ou a mais ansiosamente aguardada chegada? Você reconhece até os dentes daquela que vem. Sem nenhuma explicação ótica possível, você decifra os seus olhos a centenas de metros de distância. Eis o instante mais mágico de um encontro; momento que dispara o esboço de sorriso, perdurante por todos os seus inúmeros passos, até que ela, por fim: “Olá!”. Segundos divinos.

sexta-feira, maio 26, 2006

Hipertexto

Uma amiga minha esboçou uma questão interessante no blog dela. Tomo a liberdade de linká-la e fazer um comentário despretensioso (i.e. não é necessariamente no que eu acredito). Aliás, acho que farei isso mais vezes. Aproveitamos muito pouco o potencial hipertextual da internet, não acha?

http://o-aleph-em-mim.blogspot.com/

"Que valor tem a dignidade de uma pessoa que não conhecemos?". Acho que essa pergunta sintetiza bem o problema.

E se a gente vive espremido entre a pressão moral (imposta por nós mesmos) de que somos todos irmãos e o incômodo sentimento de não-reconhecimento do próximo como tal? Simplesmente imaginar que talvez a dignidade desse próximo não tenha valor para nós é algo que nos esmaga o peito em remorso. E, no entanto, é possível que essa seja a razão da nossa inércia.

Veja, parece que quero fazer uma inversão. Costuma-se dizer que a sociedade nos constrange a agir como individualistas e que deveríamos superar isso e fazer valer a nossa irmandade humana. E se for o contrário? E se essa irmandade for uma construção que nos martiriza o espírito há gerações, uma máscara que esconde a natureza indiferente do homem, em oposição a uma suposta natureza caridosa?

Em outras palavras: loucura total.

Incomum deficiência

Além de tudo, sofro da incômoda incapacidade de ser triste. Uso palavra mais que certa: pra onde vai tanta falta de dor? O homem também é sofrer, e não sofrer é algo incapacitante. Será que é isso que explica a minha teimosa magreza? Tristeza longa, mastigada e remoída, é guardada física, no corpo, depois de digerida por lágrimas e gestos de desespero? Penso, com lamentação, que jamais passarei dos 60 quilos.

Porque às vezes tudo o que a gente quer é ser miserável; martelar as têmporas com a roxa e desbotada pena de si mesmo, ignorante por opção, derrotado por gosto. Sentir-se assim por uns tempos acho que serve como limpeza; um purgante de males que, se ficarem rondando nossa alma, acabam matando tudo, inclusive o corpo. Então a gente se degrada a esse nível – até que aceitável – de multiplicação da dor sofrida, como que pra levantar a si mesmo a algum patamar gratificante. Patamar de quê não importa; basta que esteja acima de nossas cabeças – e, se der, acima das cabeças alheias. Em outras palavras, o sofrimento tem um quê dignificante. Ressalta a nossa humanidade; é um facho de luz sobre o ego, que de outra forma permaneceria na escuridão. Afinal, por que não ser fraco, mesquinho e pequeno? Por que insistimos na nobreza da superação e da sabedoria?

Mas esqueça tudo isso. Não tenho nada de nobre. Nasci com um cromossomo a menos, e por essa descoberta agradeço aos geneticistas. Graças a eles desconfio do mal que me acomete. Esqueceram-se de desenhar em mim a mais torpe capacidade humana, que não é nem bem a de ser triste, mas a de continuar triste. Em cerca de 24 horas, a melancolia já é uma distante memória, e lá estou eu rindo de piadas sem-graça. O que me leva a pedir que não levem mais de um dia para me enterrar, porque, se demorar muito, terão que lidar com o incômodo ato de velar um morto sorridente. Droga.

quarta-feira, maio 24, 2006

Dá pra notar que é brincadeira, né?

O novo cd do Chico é bem bom. Vá lá, é bom mesmo. E quem diz isso é alguém que odiou "As Cidades".

Só que ando bolado com o cara. Em "Subúrbio" - o verdadeiro "Endereço dos Bailes" da MPB - o senhor seu Chico Buarque encachoeira a música toda com referências a bairros - adivinha? -
suburbanos do Rio. Pois é. Lá tem "recados" pra toda uma série de lugarejos da nossa Zona Norte; é uma Avenida Brasil musical. Só que a Zona Oeste ficou de fora, a não ser por Realengo e, se não me engano, Bangu. Mas essa nem é a questão. O inadmissível é não ter um "Fala Campinho!" nas estrofes, ou melhor, no estribilho da canção. Um ultraje.

Outro motivo é a música "Ela faz cinema". Droga, essa música não satisfaz minhas atuais necessidades egocêntricas. "Ele faz publicidade, ele faz publicidaaaaadee etc". Não soa muito melhor?

segunda-feira, maio 22, 2006

O silêncio não se propaga no vácuo

"O senhor sabe o que silêncio é? É a gente mesmo, demais."
Grande Sertão: Veredas

Tá bom, Riobaldo. Mas e se a gente não consegue ser demais, porque é demenos mesmo e não tem jeito? Silêncio fora e silêncio dentro. O que a gente faz numa situação dessas?

sexta-feira, maio 19, 2006

Paisagens para se olhar sozinho

Sentado no rochedo; despenhadeiro. Daqueles de comercial de cigarro. Céu tão cinza que é quase noite. Vento forte, frio, com umas gotículas de água. Mar lá embaixo, até o horizonte? Talvez. A paisagem é clichê, mas o mar é insubstituível. O mar transmuta-se em tudo o que o céu mandar; muda de cor que nem camaleão. Olhar pra ele é quase que nem olhar pra dentro, né não? Uma massa informe de algo que dizem que é água, revolto, tudo-menos-azul, hipnótico. Mas ainda assim dizível, ao contrário da gente. Quisera eu ser um mar por dentro.

Caminho por uma planície esquisita. Amarela, laranja; pó. O céu é azul, mas não conta. É só pó, terra, pedra. Nada passa muito do vermelho, do alaranjado. Até o verde do cacto incidental é meio não-verde; aquele pior verde de todos, quase preto. Caminho com um sol amigo, tranqüilo, não queima muito. Está fresco. Mas quem disse que o frescor é alento pra alguma coisa? O horizonte continua na sua vermelhidão, e dá dois passos para cada passo meu.

Autoretrato. Filme vagabundo, máquina descartável. Fotógrafo bêbado e inábil. Ambiente escuro. Rosto oleoso, flash entorpecente. Veja, não há como fugir do fracasso. E não sorria, pois decerto há feijão – ou couve – entre os seus dentes. Essas coisas mecânicas e tecnológicas são implacáveis. Gosto delas.


Pôr-do-sol visto entre prédios. Nada mais deprimente. Só não é pior do que o visto das avenidas largas. Aqueles que você tem que baixar o pára-sol para poder continuar dirigindo. Vê se pode? Uma coisa tão bonita num lugar tão errado.

O garoto corre pela viela. Uma daquelas do Rio Antigo, onde ainda passam carruagens e senhores de monóculo e relógios de bolso. Devia ser um tempo em que diziam “São XV horas”, em vez de “São 15 horas”. O rapaz corre, meio sujo nas bochechas, porque brincou bastante. A viela é estreita, a cidade é quente e os feirantes têm bafo, mas tudo tem um colorido e uma harmonia quase pictóricas. O garoto corre, está atrasado para a partida de bola de gude. Estudar pra quê? Namorar que nada. O rapaz só corre pela cidade suja, e só o que ouve é o tilintar das bolinhas no bolso.

Cansaço. Cama desarrumada, persianas meio fechadas – Meio-dia! –, um copo d’água pela metade ao pé da cama. Luz amarelada, paredes sujas de mosquitos mortos há décadas. Fossilizados, como o rapaz que espreguiça. Meio-dia. Levanta, e vai viver sua meia-vida.

sexta-feira, maio 12, 2006

Exigente

Pra mim música mesmo é o barulho dos dedos arrastando no metal das cordas graves do violão, quando o músico passeia pelo braço do instrumento, trocando de notas, acordes e devaneios.

Pra mim futebol mesmo é o caminho que a bola faz depois de tocar na rede - gol! -, ou então o sino de igreja que é aquele balaço explodindo na trave.

Pra mim chuva mesmo é aquela que cai de repente, mais espessa que chocolate, molha o que tem de molhar, e depois deixa o mundo cintilando.

Pra mim beijo mesmo é aquele que vem de repente mas é tudo menos surpresa. Beijo que é o arremate de um tempo indefinido de toques "involuntários" no braço, elogios seguidos de amenizadores gracejos, abraços e carícias insuspeitas, e toda aquela parafernalha do fingir escancarado. Beijo mesmo é quando a farsa vira fato.