Esse texto aqui cheira a mofo. Trata-se da minha primeira - e única - coluna para uma malfadada empreitada que tive no início da faculdade: o 30segundos.
A Primeira Vez
Esse texto aqui cheira a mofo. Trata-se da minha primeira - e única - coluna para uma malfadada empreitada que tive no início da faculdade: o 30segundos.
A Primeira Vez
- Bruno, era camarão. E digo mais: com molho de abacaxi.
- Abacaxi?
- Abacaxi.
- Júlia, esse prato nem existe.
Mas Júlia achava que existia. Não só isso; ela tinha certeza de que fora esse prato que ambos comeram no longínquo jantar do seu primeiro encontro.
- Querida, comemos medalhão ao molho madeira. E eu sei disso por um motivo muito simples: lembro de ter passado quase meia hora pensando em como, sem que você percebesse, limpar a maldita carne de entre meus dentes.
- Ué, camarão também prende no dente. Aliás, abacaxi também.
Ela tinha razão; essa era uma das razões pelas quais ele odiava a fruta. Mas ele tinha um argumento irrefutável:
- Nem sei por que estou me dando ao trabalho de discutir com alguém que confunde a Winona Rider com a Uma Thurman...
- Ai, Bruno! Você é irritante, sabia? Até quando você vai usar isso? Convenhamos, uma pequena confusão dessas não desqualifica a minha memória.
- Júlia, uma é loura e nórdica; a outra é morena e cleptomaníaca. Não há credibilidade mnemônica que resista.
- Você fala de credibilidade, mas não fui eu quem esqueceu 15% dos nossos aniversários.
- Pra isso ela tem uma mente matemática...
- Que bom que você reconhece. Veja: por indução, eu tenho a maior probabilidade de estar correta.
- Ih, não vem com esse papo de lógica não. Quer saber? Em cinco minuto chegaremos ao restaurante, e será tudo esclarecido.
- Isso mesmo! Você vai ver que eles em servem medalhão. O maître resolverá a questão.
- Ou, quem sabe, a Uma Thurman.
Ele riu sozinho, e os cinco minutos restantes foram de silêncio. O mesmo silêncio que antecede as grandes batalhas.
- Chegamos!
- Você vai ver só!
- Teimosa...
- Chato...
- Boa noite! O que os senhores vão querer?
- Camarão com molho de abacaxi, por favor!
- Desculpe, senhora. Nós não temos esse prato.
- Hm, a Uma Thurman deve ter comido tudo...
- Ridículo...
- Como, senhor?
- Er, nada, garçom. Desculpe. Nós vamos querer o medalhão ao molho madeira.
- Lamento, senhor. Mas isso também não está no cardápio.
- Ah, não?
- Não.
- Ahn...
- Mas nós temos ótimas massas.
Comeram o ravioli.
Algumas estranhezas chegam de repente, mesmo que sempre tenham estado bem na nossa frente. Na nossa cara. Quase nos mordendo.
No meu caso, a expressão correta é “quase caindo na minha cabeça”, porque falo de um quadro que tenho no meu quarto. Trata-se de uma baía, à noite, vista de uma estrada no alto de uma colina. Na pista, em primeiro plano, um magnífico jaguar azul – o carro, pois onde já se viram felinos azuis? – desfila em alta velocidade. Elegantíssimo.
Agora, a questão é: o que faz um quadro de uma máquina que parece saída da capa da revista Quatro Rodas na parede do quarto de um rapaz que mal sabe distinguir um Astra de um Vectra? O que diabos faz esse adorno na casa desse menino, que, aliás, só sabe que se trata de um Jaguar porque foi alfabetizado e pode ler sem dificuldade a palavra “jaguar” no alto da figura?
Ao amanhecer parto de novo para a batalha. Nessa guerra perdida, não participo por lutar, e sim para morrer a cada dia. Toda alvorada, me dirijo ao campo de combate, acompanhado de um pelotão de fantasmas do meu passado e futuro; invariavelmente pereço. Sim, é uma guerra perdida. Mas não aceito outra existência.
Cara-caramba-cara-caraô. Era essa a trilha sonora de sua vida; um emaranhado de fonemas que nem chegavam a ser onomatopéias; irremediavelmente inexpressiva.
Jamais amou alguém a não ser por intermédio de poemas e músicas compostas por outros. Supria a necessidade de palavras com indolência, folheando dicionários ou com a despreocupação de quem tem certeza do mundo.
Sabia do Universo como a serpente sabe do céu. Sentia-se vivo, e até olhara para as estrelas duas ou três vezes, mas nem uma vez desejou alcançá-las; seu deserto de sal o fazia feliz.
Sim, jamais conheci alguém mais feliz. Tinha uns olhos honestos e um doce sorriso infantil. Deu a si mesmo para mulheres, filhos, amigos; jogou futebol, ardeu debaixo do sol, e talvez até tenha corrido o mundo. Riu e chorou deveras, ergueu taças e engoliu derrotas; sempre sonhou em visitar um lugar qualquer. Beijou, trabalhou, cantou, se desesperou e dançou. Ah, como dançou! A trilha sonora já conhecemos.
No escuro do quarto
Piscou o vaga-lume.
Voou, sobrevoou, revoou.
Iluminado pela fraca luzinha,
O menino esboçou um sorriso;
Nos seus olhos viam-se lágrimas.
Lágrimas verdes
O inseto era a única luz que havia.
Lá fora não tinha lua
E a janela estava fechada.
Também verde como o vaga-lume.
Este se aproximou e piscou outra vez
Tão perto que lhe beijou a testa.
O certo é que sabia beijar as testas de meninos tristes.
As lágrimas verdes desceram pelo rosto verde,
E o menino, já todo verde,
Quis perguntar ao vaga-lume
Algo de que não sabemos.
Talvez nem ele soubesse;
O certo é que o vaga-lume apagou
E a escuridão voltou.
Partiu. Como no perfeito instante antes da combustão de um fósforo ou de uma cantada de pneus, aquilo subiu-me da ponta – da exata ponta – do terceiro dedo do pé direito. Detalhe inesquecivelmente insignificante.
Sim, aquilo; para tal coisa não posso oferecer mais do que um pronome demonstrativo. Subiu, nitidamente, por artérias e nervos, passando por algumas membranas e cartilagens. E logo tomou minha perna uma biológica sensação de plenitude. Eu já não tinha perna; tinha aquilo.
Não foi além; parou por ali e... Sumiu. Silêncio. Contudo, o pequeno hiato só permitiu que eu tomasse um gole de ar e dois “tiques” do relógio; o indefinível logo tomou-me de assalto, pelas costas. Ah, o silêncio! Mera ação diversiva.
Baixara a guarda, de fato, e a punhalada pegou-me de surpresa. Adaga romântica, que nada; foi uma seringa na décima vértebra. A agulha – de uma temperatura indecifrável – injetou-me um quê de inverter o sangue. Engoli em seco. Quase caí para a direita – detalhes sonoros...
Tomadas por aquilo, minhas células vibraram, ferveram, se desencontraram. Eu era todo caos. Cambaleei novamente, e senti, pela primeira vez no mês, o sol da manhã. Olhei para o céu e depois para mim; vi que amava. Amava?
Já tiveste a senhora uma pressa às avessas? Pressa... Aquela ânsia de movimentar-se largo e veloz enquanto se espera um tropeço do tempo. Não, não é dessa que estou falando. Falo daquela de quase querer dormir enquanto o tempo se consome. Pressa elástica, com cheiro de borracha. É a pressa do preguiçoso, não do trabalhador. Em vez de segurar o relógio, empurrar os ponteiros; acordar no dia seguinte e aterrorizar-se com a idéia de que apenas um dia passou. Já tiveste, senhora, uma pressa dessas?
Aposto que sim. Sei que já desejaste saltar cinco anos no tempo. Tenho certeza de que ao menos uma vez te apressaste para abandonar o vazio de um amor perdido. Não para tapar o buraco, mas para ser coberta por ele. Dormir lá embaixo, isolada do céu e do vento, até renascer eras depois, assim como semente mal plantada. É, querida senhora, cada uma de tuas rugas deixa transparecer os anos em que te anulaste, ansiosa por um não-sei-o-quê milagroso.
Mas bem sei que o milagre não veio. A dor permanece, e a pressa aumenta a cada dia. Cinco já não bastam; agora queres que em uma noite passem dez anos, até que o sofrimento desista. Amanhã pedirás por 15, 20, 30... Até que não sobrem mais anos.
Até que não sobrem mais anos. Tens medo, eu sei. É que todas as pressas levam ao mesmo caminho. Umas resistem, e se desesperam para segurar os ponteiros. Outras – como a senhora – arrastam-se pela estrada, acompanhando de longe seus próprios cortejos fúnebres. Embora reconheçam seus rostos nos caixões, não hesitam em continuar; entoam cânticos aflitos e esperançosos. Mas o milagre não vem.
O que levarás, senhora, desta vida que ora te interpela? O que levarás, além do xale de luto e dois ou três sorrisos esmaecidos? Algo mais do que aquela meia dúzia de cartas nunca escritas? Quatro beijos frios? Um porta-retratos roubado?
Ah, senhora, que triste inventário terás de fazer! Trancada no quarto, nos últimos momentos, irás saborear a glória ida e apodrecida. E então, finalmente, apressado ou não, o tempo baterá à porta. Será chegada a hora de pagar os juros de anos e anos dessa estranha e insistente pressa. A moeda? Tristeza, saudade, solidão e, principalmente, uma insuportável sensação de arrependimento.