quinta-feira, dezembro 28, 2006

Insetos e sucos de manga

Hoje, no café da manhã, interpelou-me da seguinte forma uma formiga metida a gente:

“Já ouvi de tudo nessa vida. Já me disseram que o amor é um dever, que o amor é a salvação, que o amor é uma mentira, que o amor é tudo o que eu preciso, que o amor é uma palavra de quatro letras, que o amor é o que me faz formiga. Você anda pensando que o amor é uma dúvida”.

Ela rondava o pote de achocolatado em pó, pequena que só. Eu tomava calmamente um suco de manga. Não lhe dei atenção. Mas também não lhe esmaguei com o dedo.

“Talvez amar seja ser compelido a escolher, não? Quem sabe o contrário do amor não seja o ódio, e sim a indiferença? Não há dúvidas sobre o que nos é indiferente, e é por isso que a paixão nos vira a cabeça, e abala o exoesqueleto. Porque com ela vêm a dúvida e a hesitação. O amor é não saber. Amar é duvidar que se ama. O que você acha?”

Permiti-me olhar para ela. Animal insolente. Quem era ela pra vir falar de humanidades para um humano? Desci o copo, com o intuito de partir o seu corpo com a borda do fundo de vidro. Ela escapou agilmente. Além do Português correto, ela era veloz como um atleta. Correu pra longe, e, antes de entrar na sua casa na tomada, olhou pra mim uma última vez. Acho que mostrou a língua.

quarta-feira, dezembro 27, 2006

Porque tinha que ser dito

Nas palavras de Rodrigo, O Chorão de Cachoeiras de Macacu:

Pra falar a verdade, acho que esse tal de Sócrates era mesmo um banana. Corruptor de menores, sim senhor, sofista e traidor do Estado ateniense. "Só sei que nada sei" uma ova. Tem coisas que a gente sabe. E não são poucas. Mas sabe mesmo! Que nem sabe o caminho pro banheiro de madrugada. Assim, de olho fechado e meio sonâmbulo. O problema é que os outros têm a péssima mania de saber também. E falar que sabem. E aí a gente descobre que eles sabem diferente. Dá briga. Soco, chute, essas coisas.

terça-feira, dezembro 26, 2006

Ao telefone

- Não sei... Mas é ser meio mala enxergar podridões em pleno Natal, né?
- Qual o quê! O Natal não é diferente de nenhum outro dia no ano. Fico puto com essa onda de bondade nas pessoas. Parece que todo mundo vai dar um daqueles abraços coletivos na Lagoa. E você é a Lagoa.
- É, você tem razão. Ser mala é falar “Qual o quê!”.
- Se não me engano, foi você quem ligou pra mim, e não o contrário.
- Sim, e pra desejar Feliz Natal, e não ficar ouvindo resmungo de velho ranzinza. Era só isso.
- ...
- Pra falar a verdade, eu nem gosto tanto de você assim. Mas tenho a péssima mania de ser educada e cordial.
- Já te mandaram tomar no rabo hoje?

Algumas ofensas depois...

- Olha, tenho que ir lá. Trocar 73% dos presentes que ganhei.
- Papai Noel está ficando gagá, né. Já era tempo.
- Cale a boca, que ainda estou ofendidíssimo com a senhorita.

Mais algumas ofensas depois...

- É um absurdo! Nunca confie numa pessoa que não gosta de bacalhau!
- Dá licença? Não gosto, e pronto.

Três ou quatro xingamentos depois...

- Amor, tenho que ir mesmo, tá?
- Tá bom, linda. Amanhã nos falamos.
- Durma com os anjos.
- Não posso.
- Hein?
- Você não está aqui.
- Bobo! Tchau, tá?
- Beijo.
- Beijo.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Absolutamente

Essa é uma resposta-brincadeira às minhas colegas Stephanie e Mariana. Como o personagem masculino nos diálogos delas têm cerca de 5% do cérebro funcionando, senti-me no dever de deixar a mocinha falar pouco e ouvir muito nesse aqui. Sabe, nada mais divertido do que provocar uma mulher! : )


- O problema é quando aparece alguém que dá aquele meio-sorriso de “já saquei tudo”, né.
- Como?
- É. A onipresente estupidez masculina lhes deixou muito mal-acostumadas. A sorte e a perdição das mulheres são os playboys que andam pela noite agarrando o braço das moças.
- Mas eu odeio quando fazem isso!
- Sim, mas eles lhes são necessários. Dão uma certa grandeza ao feminino, e é sempre bom estar por cima. Acho que foi uma facção excêntrica das feministas que um dia criou os pitboys e os excessivamente carentes e/ou tarados. O problema é que deve ter havido uma explosão no laboratório, e eles acabaram se multiplicando demais. Hoje estão em todo lugar.
- Hahaha, você sempre inventa historinhas para expressar alguma coisa. É meio que cretinice colocar nas mulheres a culpa pelos idiotas do mundo, não é?
- Talvez. Mas a cretinice maior é fazer isso através de uma historinha. Quando você vem e diz que isso é cretinice, eu viro com a minha cara de babaca e respondo que “é só uma historinha, pra querer dizer outra coisa”.
- E essa coisa seria...
- Na verdade, é só para jogar na mesa que as mulheres em geral têm uma necessidade de auto-afirmação maior do que a nossa.
- Será mesmo? Não somos nós que saímos por aí morrendo de medo de ter o pau pequeno...
- De fato. Mas quem é esperto não esconde que se preocupa com isso. Mas seria contraditório vocês admitirem que também precisam disso. Não na nossa frente. É que vocês necessitam da gente para se afirmar. Quer dizer, dos idiotas. De pau grande ou pequeno, a idiotice tem o mesmo tamanho.
- E aonde você quer chegar com isso, Mr.-I-know-women?
- Apontando e rindo desses é que vocês se orgulham de serem mulheres. Imagino que poucos prazeres sejam maiores do que odiar quando alguém agarra o seu braço na noite. Ou então dançar mais afastado “porque esse cara tá querendo alguma coisa”. O problema é que vocês não conseguem imaginar a possibilidade de ele estar só querendo dançar. Vocês nunca estão preparadas para os homens de que tanto sentem falta. E é por isso que perdem a cabeça quando conhecem um. O amor-próprio feminino consegue ir do céu ao chão em tempo recorde.
- Você está querendo transformar uma defesa natural feminina em um sinal de fraqueza.
- Não é fraqueza. É um sintoma. Depois de tantos séculos sendo menores do que os homens, consideradas menos inteligentes, interessantes e úteis, é apenas natural que busquem se engrandecer às custas dos desprezíveis entre nós.
- Eu estou sentindo cheiro de machismo?
- Absolutamente.
- Vai dizer que não?
- É por isso que amo esse advérbio. Não quer dizer que sim nem que não. Que nem as mulheres.
- Ah, então você também acredita que as mulheres são misteriosas?
- Na verdade, não. Só achei que seria uma frase de efeito. Aliás, eu posso nem acreditar em boa parte do que eu disse nessa conversa.
- Agora é você que está dando uma de misterioso!
- Absolutamente.

terça-feira, novembro 21, 2006

Coisas que surgem da insônia

***

O que eu queria era fazer uma bela de uma homenagem ao amor e aos amantes, e à sua simplicidade devastadora. Queria era cuspir pra fora de mim a perda dessa mística do involuntário, do terrível odor do descontrole. Queria mesmo era exorcizar a minha individualidade autoritária. Queria amar por sorteio, por romantismo, química, magia, que seja. Deus! Queria amar até na biologia; que fossem amores darwinistas.

***

Tu, estranha, que há pouco me conheceste. Falo com tu mesma. Quero que saibas que sou um impostor, um aborto do não-acaso. Não esbarrei em ti de propósito, nem ao menos surpreendi-me com teu sorriso deslumbrante. Eu já sabia. De tudo. Até do teu sobrenome impronunciável. Escolhi a dedo cada um dos teus defeitos inebriantes, derrotei meus rivais por pura crueldade, e não necessidade. Não lutei contra mim mesmo, não me debati na cama, noites sem dormir. Eu te calculei toda, mas nem por isso amo-te menos do que o bastante. Talvez eu a ame mais do que todos os amores de nosso mundo. Falta-me, quem sabe, apenas definir tudo isso. Tudo é canalhisse quando ainda não tem nome.

***

Há ainda a possibilidade de tudo não passar de uma torpeza minha. Divirto-me com a hipótese de ser um escroque, de ter perdido meu coração numa ruela qualquer do Rio, em dia de temporal sem guarda-chuva. Divirto-me, mas é porque sempre fui o último a acreditar no pior. Talvez – pensamento horrendo – eu seja um idiota, um ser hediondo, que nem mereça a alcunha de “homem”. O que diriam se soubessem que todos os meus sentimentos foram, são e serão falsos, e que dissimulo a minha desumanidade com simpáticas reflexões pseudo-filosóficas? Mas não, não é tão assustador. Rio ao pensar nessas coisas. Divirto-me. Sou o último dos otimistas. Sou daqueles que só se acreditarão mortos quando os avisarem, com documento carimbado e firma reconhecida. “Fulano: falecido. Não cabe recurso. Cumpra-se”. Ou algo que o valha.


***

Enquanto isso, sigo com a vida, amealhando pessoas queridas. Temo por elas; gostaria de me fazer entender. Poucas vezes fui tão sincero.

***

quarta-feira, novembro 15, 2006

Nonsense com links (ao molho pardo, com várias opções de guarnição)

Obs: O texto é inútil e provavelmente de má qualidade. Incluo, então, para evitar violência, links aleatórios para aumentar a sua cultura geral.


O Crasso começou a ser tomado pelas reticências numa noite de cerveja. A princípio, pensou que fosse coisa do frio, um mau-olhado meteorológico nas cordas vocais. Parou no meio da cantada. E não era qualquer cantada; não perguntava se ela já tinha vindo ali, nem mesmo queria saber o nome dela, nome de princesa. Não, era uma daquelas criativas que surgem semana sim, semana não. No meio da frase, sorridente e confiante, “...”. Assim, reticência quadradona mesmo, fonte Verdana.

Não é preciso dizer que ele não pegou a mulher. E passou o resto da noite avexado; nem dançou Macho Man ou o medley dos anos 60. “Rouco. Rouco!”.

Rouco uma pindamonhangaba. Estava era, como descobriria mais tarde, reticente. (Não é esse o propósito das reticências? Revemos nossos dicionários, que a historinha é meio nonsense mesmo.)

Pois bem. Pegou alguns tic-tacs emprestado do Manuel. Deitou o dia seguinte inteiro. Pediu pra mãe fazer chá e paparicá-lo. “Menino, você não está muito velho pra isso não?”, ralhou a mãe, sempre mau-humorada. “Ah, mãe, você ...”. Não falou mais o resto do dia. Os pernilongos que erravam pelo quarto comentaram até que viram balõezinhos de histórias em quadrinhos, só com reticências. Essa foi pra deixar claro que silêncio é diferente de reticências. “Silêncio é silêncio, reticências são três pontinhos”, escreveu Al-Qali Mahdi, sábio sufista do século XVI.

Crasso... Que nome a mãe do moleque foi escolher! Era isso que sempre a sua namorada pensava, a Marcela. “Nome de cônsul romano!”, gabava-se do gosto duvidoso a mãe. “Cônsul? Com certeza devia ter havido um embaixador com um nome melhorzinho...”.

Sim, a Marcela era uma porta. Mas uma porta de madeira de lei, finamente decorada e envernizada, com figuras lascivas em alto-relevo, esculpidas por um holandês esquizofrênico viciado em prostitutas latinas. É, a Marcela vinha daquela longa tradição de mistura entre europeus e nativos, e era o que podemos chamar de gostosa de primeira linha. Deliciosa, para ser mais exato. E não precisava ser muito mais que isso.

Era a namorada do Crasso, e suas amigas – portas menos exuberantes: portinholas, portõezinhos, alçapões etc – sempre a tinham sacaneado por isso. Mas ele beijava bem, tinha um carro legal e era bem dotado. O que mais uma porta poderia querer? Olhos-mágicos e calços! Haha! Péssima piada, mas eu tenho certeza de que 60% dos que estão lendo isso pensaram nela antes de lê-la.

Mas agora ele estava reticente. Chato, hein? Ela queria falar de como achava que sua bunda estava caindo, e o máximo que recebeu de apoio foi um apertão na nádega esquerda. Nem uma palavrinha doce, ou mesmo safada. Também, com esse nome... Não sabia como tinha ficado com ele tanto tempo. “Dois meses! Que desespero, vou cair fora!”.

E caiu. O pobre do Crasso não pôde nem argumentar. Ficou tendo que ouvir o riso dos três pernilongos supracitados. Chamavam-se Xfv, Kll e Trw (pernilongos não conhecem vogais).

“(risos). Mnh hstr m qdrnhs fvrt! (risos)”. “(risos)”. Trw, não querendo, como Kll, dar como única contribuição à história uns risos entre parênteses, voou até a cama e picou o rapaz. Voltou todo cheio de si. Literalmente.

Histórias nonsense devem acabar abruptamente.

segunda-feira, outubro 23, 2006

Tolices

Não, não deve haver uma fiandeira velhinha, balançando em sua cadeirinha de vime, tecendo os lotes de nossas vidas. Porque as velhinhas morrem antes de nós - são mais velhas, ora bolas! - e depois ficaríamos com cara de bobos, segurando o fio com uma mão e coçando a cabeça com a outra. E a cadeirinha de vime vazia. Hmm, não. Parece-me que não sou regido por destinos; nem meus nem dos outros.

Mas também não sou profeta do acaso. Não acredito em royal straight flushes. Não enxergo dados sem dono, sem luz, sem números. Não os vejo movendo a terra, desencontrando o mundo. O acaso é fantástico demais para ser crível. Não acredito em ganhadores da loteria, muito menos em bigornas cadentes.

Ah, como viver é mesmo um exercício de cuidado! Não se deve ter cautela apenas com o que se acredita, mas também com o que se nega. Pensar é estar sempre em sobressaltos. É não evitar a vergonha de acreditar em tolices, como a que digo agora. Quer dizer, não agora. No próximo parágrafo.

Apesar de toda autoflagelação intelectual, sempre me escapam, as tolices. Elas estão lá, encontram sempre um caminho, como um ponta-esquerda ensaboado. Geralmente não as digo; guardo-as nas estranhas. Pensar é mesmo vergonhoso. Há que se ter muita cara-de-pau para chegar a qualquer verdade que seja. Enfrentar pelourinhos, corredores poloneses, colunas de colunistas idiotas, dentro e fora da gente. E mesmo assim rir de si mesmo, pois provavelmente é tudo besteira, e vamos ler um livro qualquer que tenha uma idéia melhor sobre o assunto.

E ainda não disse a tolice. Pelo menos não aquela à qual me referia. Mas sei que sou um pé de besteiras. Que nos traz o próximo parágrafo?

A tolice é... Bem, não sei exatamente o que é, mas é que não me vejo tanto como uma marionete no escuro. Duvido dos limites que minha biologia e minhas emoções me impõem, duvido das rédeas que existem no meu ombro. Sinto-me assustadoramente no controle de mim mesmo. Como se eu fosse capaz de apertar o botão vermelho e voar, o verde e chorar, o amarelo e sentir fome. Ou melhor, é como se o malandro aqui tivesse tinta para pintar os botões da cor que quisesse. Ou, quem sabe, esqueçamos os botões, porque são filhos da "causa e efeito". Me vejo exatamente onde quero estar, mesmo que esteja na mais inconcebível infelicidade ou descontrole. Seria eu o único culpado de minhas alegrias e tristezas, dos meus desejos e desprezos? É um pensamento tolo, eu sei. Mas é o ponta-esquerda ensaboado; seria o Garrincha da minha mente, se o anjo das pernas tortas não tivesse sido ponta-direita.

Enfim, tolices.

segunda-feira, outubro 16, 2006

Não leia se não gosta de coisas inúteis

Então. De repente perdi o sono. Acordado pelos meus dedos, parece que nunca dormi; vim escrever-te. Poderia usar a desbotada analogia de que a noite lá fora é calma, mas aqui dentro o mundo agita-se, revolto. Poderia, mas não o faço. Primeiro, porque exige uma cara-de-pau bem grande repetir analogias desbotadas a essas horas. Segundo, porque não; estou tão sereno quanto a lua lá fora. Estou em lua nova.

Ainda assim não consigo dormir. Nas veias não há uma pulsação supérflua, uma gota sequer de nenhum desses hormônios do caos. O coração só bate porque é só isso que ele sabe fazer. Ele bate, no ritmo daquele jazz que se ouve em lugares com pouca iluminação e muita fumaça de cigarro. Vivo, apenas.

Já reparou quão notívaga é a luz do monitor do computador? Ela trabalha alegre, saltitante, não importa o quão tarde. Tenho pra mim que é mais fraca de dia, como se gostasse mesmo é do depois da meia-noite. Já eu, vou definhando em sonolência, depois de intermináveis horas de digitação. Até que apago a luz dos olhos; durmo sem saber o que me trouxe aqui. Povoam meus sonhos saltos, abelhas e uma multidão que veste chapéus. Não tenho nem a sorte de sonhar com o motivo da insônia fajuta.

sexta-feira, outubro 13, 2006

Perfil imaginário I

Desfazia a mala quando o tabuleiro - como sempre mal arrumado - esparramou dois cavalos brancos e um bispo negro. Lá fora chovia o céu do mundo inteiro, e lá dentro apenas um quarto de hotel. Ocupado pelo ser mais desorganizado do mundo.

Jamais vira trovoadas e relâmpagos tão constantes quanto esses. Achava que era coisa de filme; umas duas vezes sonhou presenciar tais tempestades. Agora nem lembra disso, e trata de recolher as peças de madeira, em cima da cama milimetricamente arrumada. Cama de hotel tem cheiro de vida nova.

Ele mesmo as fazia. Entalhes calmos e medidos, e os oblíquos bispos tomavam forma; A franqueza dos negociantes de carro de Duque de Caxias (não conheço nenhum, mas sempre os imaginei muito diretos), e as tinha nas mãos: quatro torres. Esculpia as rainhas com uma sensualidade autista, de assustar psiquiatra; mas talvez isso seja exagero, coisa da cabeça de quem escreve. Quem esculpe só o faz com gosto, sem perversão.

Era assim um hobby, uma mania, uma marca pessoal. Chamava a cada hora de uma coisa diferente. Deus, já se referira a isso como seu "pequeno ajuste de vida"! Fosse como fosse, ele devia ter dezenas de jogos diferentes de xadrez, espalhados por hotéis em todo canto. Alguns eram testemunhas da criatividade humana: vikings sanguinários e de barbas tortas, soldados normandos estrábicos, espartanos orgulhosos em suas capas vermelhas, com alguns dedos faltando. Outros são cópias exatas da uniformidade moderna. Sempre se perguntara por que os bispos têm aquele sorriso invertido na cabeça. Na dúvida e nos momentos mais mornos, fazia-os iguaizinhos aos das lojas.

É, dezenas. Dezenas de exércitos perdidos e espalhados por cada canto da sua fuga, das suas novas vidas novas. Viciara-se no cheiro dos hotéis. Mas não era um nômade qualquer. Ele não simplesmente partia, com sua malinha preta esgarçada e seu andar inclinado, assoviando um choro antigo. Deixava seus soldados imperfeitos ao apagar a luz; um pouco tristonho, é verdade, mas lá deixava seus homenzinhos de madeira, como um tributo a mais uma vida deixada em poucos dias. Perguntava-se se estes choravam ao vê-lo partir. Não sabia; jamais abrira a mesma porta duas vezes.

domingo, outubro 08, 2006

Para pensar de noite

Às vezes parece que escrever é um parto. Parto de bebê parido há gerações por pais sem conta. Bonito dizer o que quer que seja, se dizer é parir. Mas às vezes escrever é simplesmente pintar enganos nas paredes já pintadas de mil outros enganos, por sua vez copiados de empoeirados alfarrábios plagiados. Às vezes parece que não tem graça.

E não se trata aqui de louvar originalidades. É simplesmente desacreditar um pouco eu mesmo e minhas palavras. Dizer talvez seja tão somente matar o tempo, que de outra forma morreria sozinho. Afinal, nada melhor do que ter que ver com a morte de algo, principalmente o tempo. Saber pelo jornal não basta. O bom mesmo é sentir o sangue quente escorrendo nos pulsos. O sangue correr sozinho, ignorante da gente, é um insulto, uma blasfêmia. Malditos rios que não precisam de mãos humanas para desaguar. Em suma: figurantes, jamais; queremos é mover o mundo. E, - coisa estranha! - o sopro de nossas palavras é mais forte que nossos músculos.

segunda-feira, agosto 28, 2006

Só pra avisar que vivo

Pelo senso comum, as maiores e melhores declarações de amor são públicas. Basta assistir a qualquer comédia romântica: a cena final de reconciliação é sempre pública. Sempre um dos dois (geralmente o homem) abre seu coração diante de uma platéia gigantesca. Roubar o microfonme em congressos, falar no púlpito de uma igreja, contratar aviões com faixinhas, comprar outdoors etc. Acordei pensando nisso hoje. Do nada, já que não protagonizo nem vejo uma comédia dessas há algum tempo.

Por que, se público, tem mais valor do que as mesmas palavras ditas no conforto particular da intimidade? Seria o ato de expor-se uma prova de amor? Mas por quê? Qual a conexão de uma coisa com outra? Deveria lançar uma enquete? Ou simplesmente arranjar coisa melhor pra fazer?

quarta-feira, julho 19, 2006

Medo da morte

E se der vontade de espirrar no caixão?

segunda-feira, julho 17, 2006

Será?

Penso; logo enlouqueço.

Como se fossem três da manhã

Nada pior do que poesia insincera. E é o que mais tem por aí, dentro da gente mesmo. Tentar falar e descobrir que é mudo. Fala-se assim mesmo; a boca foi feita pra isso.

Aliás, a insinceridade e todos os seus derivados talvez sejam mera conseqüência disso: a incapacidade de expressão de quem diz/age ou a insensibilidade de quem ouve/reage. Mentimos porque não nos compreendemos ou porque não nos compreenderiam. São as duas únicas hipóteses em que uma verdade pode causar qualquer mal. Acredito que não há nada que não possa ser compreendido e aceito. Não há razão para a mentira, a omissão, a atuação, a máscara. No entanto, aproximadamente 60% de nossa vida é dedicada à arte da esquiva. Canalhisse, que nada. Resignação.

terça-feira, julho 11, 2006

Risco de reflexão que não é minha

"
Cansaço. Cansaço que pega e tira a cor de tudo que é bonito - e que é feio também. Cansaço que só faz fechar o olho, mesmo acordado. Cansaço que acaba com esperanças; destrói idas alegrias. Cansaço que cansa antes de ser cansaço. Cansaço que mata. Que mata, pai. Já não tenho nem lágrimas pra chorar. Eu sou minhas próprias lágrimas. Adeus, meu pai. Não pense que não o amo.

Rogério
"

Como é simples criar o sofrer e morrer de alguém. Rogério não existe, nunca existiu, e portanto nunca se matou. Sempre foi morto, nasceu de uma cabeça que cria. Como somos capazes disso? De onde arrancamos o desespero e inventamos destinos? É uma brincadeira de mau gosto. Mata quem não existe, entretém quem vive. A dor deveria ser banida da arte.

segunda-feira, julho 03, 2006

Spam pode ser divertido

Quem tem e-mail do hotmail - e, mais recentemente, do Yahoo - sabe do que estou falando. Aliás, quem usa internet e não sabe do que estou falando? "Enlarge your penis" - mesmo que você seja mulher - "Buy your college degree" - mesmo que você seja um doutor em física quântica - e tantos outros títulos fascinantes. É, spam. Aquela coisa que todo mundo odeia.

Odiosos sim, mas peraí. Vocês já pararam pra ler? Pode ser uma das coisas mais divertidas de uma tarde à tôa na internet.

Abaixo uma breve seleção de um dia de lixo no meu hotmail:

O título é [Ambien-Valium-More]. Donas-de-casa deprimidas e neuróticas devem ser o público-alvo perfeito do Discreetly Shipped Medicine, que anuncia: Get medications to your door and save BIG. Só que o serviço não é lá muito bom; o site está fora do ar.

MakeaPussyHappy me enviou o preocupado e-mail: "You know she's faking, right?". Agradecido pelo aviso de que ela está fingindo orgasmos (como não pude perceber?), leio a mensagem da Option Biotech Natural Enhancements, uma "empresa canadense que produz e distribui produtos naturais para a saúde". Um arremedo de anúncio, esse tem até uma sóbria foto de dois pesquisadores olhando pra baixo. O produto em questão é o Erexium (100% natural), cujo slogan é "Longer, thicker, harder". A promessa: A larger penis size & more performance. Manutenção diária da próstata, seja lá o que for isso.

BarbaraAnne23, assim como a grande maioria, é minimalista. O assunto é um teaser de primeira ordem: Let's Screw Our Brains Out. No corpo da mensagem, apenas um link: girls want now. Get-A-Bigger segue na mesma linha de criação: o título "More Impressive Load of Cum" é seguido do link no corpo da mensagem. More impressive. Não sabia que isso deveria ser impressionante. Pobre de mim, ia morrer sem saber a melhor maneira de impressionar uma dama.

Temos também testemunhais. TearMakers (que nome!) me envia o seguinte anúncio: "Girls that scream for HUGE... Cocks!". Uma senhorita dá seu depoimento: I love getting face fucked by more than 10 pounds of 100% pure man-meat!"

Outras citações geniais (título do e-mail / corpo da mensagem):

"Looking for no string crazy SEX? / Come and play with me!".
"Nice shoes. Wanna fuck? / Sexy wife looking for some hard cock."
"Add this Pharmacy to your favorites / Fantastic Generic Drugs. Pass it on to your friends!"

Novos territórios na web

Bom dia a todos.

O Fulano aqui adquiriu uma segunda personalidade. Agora pensa que é Pompeu, ex-cônsul e triúnviro romano. E pior: tem dois amigos que embarcaram na mesma viagem: Júlio César e Crasso.

O endereço dessa ... coisa... é http://triovirado.blogspot.com

Divirtam-se.

domingo, julho 02, 2006

Um pouquinho de mim

Pra quem se interessa.

Eu nunca desanimo. Perco a iniciativa.

sábado, junho 17, 2006

Injustiças da Copa

A pergunta é: por que o Bussunda e não o Galvão?

Obs: O autor desse blog não deseja realmente a morte de ninguém. Já o seu eu-lírico...

sábado, junho 03, 2006

There's treasure everywhere!



Esse é um dos motivos pelos quais eu quero ter um filho igual ao Calvin.

Tem coisa mais bonita que uma criança?

Sem causa e sem efeito

É que entrei na casa das reflexões. Sabe, um hiato entre semanas de vida em que a gente não aceita nenhuma novidade, nenhuma caminhada pra frente na nossa existência. Porque tem que parar e pensar. Revista mesmo, retrospectiva, teste, rewind, limpar a cabeça do vídeo, conversar por duas horas consigo mesmo. Isso tudo embolado junto, sentado numa cadeira verde. Tomar pouco banho, só pra sair de casa. Nem sair, se pudesse escolher. É hora da faxina, moleque, depois você vai.

De vez em quando é assim que tem que ser. Vamos pontuando todo o viver assim, com momentos de olhar a parede sem ver a parede. Porque o que a gente tá vendo é justamente o contrário; o dentro da gente, que se enfunila pelos olhos e vai parar naquela imensidão de nada que é o que se chama de eu. Eu. Viajar pelo eu pede ficar sentado e de olho aberto. Não é sair do mundo não senhor. É estar tão no mundo que não se consegue nem se mexer. Digo e redigo. Quem mais está com o pé nesse chão nosso de cada dia é quem parece não estar. Porque quem pisa no chão não é o nosso pé, mas a gente todo, corpo e alma. E pra ver alma, minha gente, só sentado e de olho aberto, vidrado.

E aí que é a parte da diversão. Tem morte, tem guerra, tem romance, tem comédia, tem uma cinemada toda. Tem coisa ruim e coisa boa. Lá dentro, a gente é Nobel da Paz e do Diabo também, às vezes os dois no mesmo prêmio. É hora de arrumar, cortar, chutar e polir; caminhar por um caminhozinho frio e escuro e ir visitando cada recanto do lá dentro, onde – todo mundo já cansou de saber – quem é rei é só a gente mesmo. Rei de um jeito, rei de outro, sentado nos tronos mais esquisitos do mundo. E a gente conversa, embaixador de si mesmo, negocia, relata e argumenta, e leva consigo a vitória, a derrota, e todos os termos de cada conversa com cada majestade nossa. Todo mundo é um pouco jornalista da introspecção.

Resultado disso tudo, tem não. Desde quando alguma coisa na vida tem resultado? Tem é acontecença. E o porquê a gente inventa depois.

domingo, maio 28, 2006

Piadinha em falsete

Ela-lírico disse a Eu-lírico que o amava. Mas por trás do cromaqui, Ele-lírico fazia a festa. Eu-lírico descobriu; estapeou Ela-lírico, que, envergonhada, não viu mais ninguém. Ele-lírico foi tirar satisfações e apanhou também. Nós-lírico acreditou em tudo e ficou chocado. Até que Eles-lírico chegou e explicou: “Calma, minha gente, que isso é ficção”.

Sorriso em oito linhas

Sabe quando você vê, lá longe, lá longe, onde tudo ainda são só manchas de cor, surgir a mais grata surpresa, ou a mais ansiosamente aguardada chegada? Você reconhece até os dentes daquela que vem. Sem nenhuma explicação ótica possível, você decifra os seus olhos a centenas de metros de distância. Eis o instante mais mágico de um encontro; momento que dispara o esboço de sorriso, perdurante por todos os seus inúmeros passos, até que ela, por fim: “Olá!”. Segundos divinos.

sexta-feira, maio 26, 2006

Hipertexto

Uma amiga minha esboçou uma questão interessante no blog dela. Tomo a liberdade de linká-la e fazer um comentário despretensioso (i.e. não é necessariamente no que eu acredito). Aliás, acho que farei isso mais vezes. Aproveitamos muito pouco o potencial hipertextual da internet, não acha?

http://o-aleph-em-mim.blogspot.com/

"Que valor tem a dignidade de uma pessoa que não conhecemos?". Acho que essa pergunta sintetiza bem o problema.

E se a gente vive espremido entre a pressão moral (imposta por nós mesmos) de que somos todos irmãos e o incômodo sentimento de não-reconhecimento do próximo como tal? Simplesmente imaginar que talvez a dignidade desse próximo não tenha valor para nós é algo que nos esmaga o peito em remorso. E, no entanto, é possível que essa seja a razão da nossa inércia.

Veja, parece que quero fazer uma inversão. Costuma-se dizer que a sociedade nos constrange a agir como individualistas e que deveríamos superar isso e fazer valer a nossa irmandade humana. E se for o contrário? E se essa irmandade for uma construção que nos martiriza o espírito há gerações, uma máscara que esconde a natureza indiferente do homem, em oposição a uma suposta natureza caridosa?

Em outras palavras: loucura total.

Incomum deficiência

Além de tudo, sofro da incômoda incapacidade de ser triste. Uso palavra mais que certa: pra onde vai tanta falta de dor? O homem também é sofrer, e não sofrer é algo incapacitante. Será que é isso que explica a minha teimosa magreza? Tristeza longa, mastigada e remoída, é guardada física, no corpo, depois de digerida por lágrimas e gestos de desespero? Penso, com lamentação, que jamais passarei dos 60 quilos.

Porque às vezes tudo o que a gente quer é ser miserável; martelar as têmporas com a roxa e desbotada pena de si mesmo, ignorante por opção, derrotado por gosto. Sentir-se assim por uns tempos acho que serve como limpeza; um purgante de males que, se ficarem rondando nossa alma, acabam matando tudo, inclusive o corpo. Então a gente se degrada a esse nível – até que aceitável – de multiplicação da dor sofrida, como que pra levantar a si mesmo a algum patamar gratificante. Patamar de quê não importa; basta que esteja acima de nossas cabeças – e, se der, acima das cabeças alheias. Em outras palavras, o sofrimento tem um quê dignificante. Ressalta a nossa humanidade; é um facho de luz sobre o ego, que de outra forma permaneceria na escuridão. Afinal, por que não ser fraco, mesquinho e pequeno? Por que insistimos na nobreza da superação e da sabedoria?

Mas esqueça tudo isso. Não tenho nada de nobre. Nasci com um cromossomo a menos, e por essa descoberta agradeço aos geneticistas. Graças a eles desconfio do mal que me acomete. Esqueceram-se de desenhar em mim a mais torpe capacidade humana, que não é nem bem a de ser triste, mas a de continuar triste. Em cerca de 24 horas, a melancolia já é uma distante memória, e lá estou eu rindo de piadas sem-graça. O que me leva a pedir que não levem mais de um dia para me enterrar, porque, se demorar muito, terão que lidar com o incômodo ato de velar um morto sorridente. Droga.

quarta-feira, maio 24, 2006

Dá pra notar que é brincadeira, né?

O novo cd do Chico é bem bom. Vá lá, é bom mesmo. E quem diz isso é alguém que odiou "As Cidades".

Só que ando bolado com o cara. Em "Subúrbio" - o verdadeiro "Endereço dos Bailes" da MPB - o senhor seu Chico Buarque encachoeira a música toda com referências a bairros - adivinha? -
suburbanos do Rio. Pois é. Lá tem "recados" pra toda uma série de lugarejos da nossa Zona Norte; é uma Avenida Brasil musical. Só que a Zona Oeste ficou de fora, a não ser por Realengo e, se não me engano, Bangu. Mas essa nem é a questão. O inadmissível é não ter um "Fala Campinho!" nas estrofes, ou melhor, no estribilho da canção. Um ultraje.

Outro motivo é a música "Ela faz cinema". Droga, essa música não satisfaz minhas atuais necessidades egocêntricas. "Ele faz publicidade, ele faz publicidaaaaadee etc". Não soa muito melhor?

segunda-feira, maio 22, 2006

O silêncio não se propaga no vácuo

"O senhor sabe o que silêncio é? É a gente mesmo, demais."
Grande Sertão: Veredas

Tá bom, Riobaldo. Mas e se a gente não consegue ser demais, porque é demenos mesmo e não tem jeito? Silêncio fora e silêncio dentro. O que a gente faz numa situação dessas?

sexta-feira, maio 19, 2006

Paisagens para se olhar sozinho

Sentado no rochedo; despenhadeiro. Daqueles de comercial de cigarro. Céu tão cinza que é quase noite. Vento forte, frio, com umas gotículas de água. Mar lá embaixo, até o horizonte? Talvez. A paisagem é clichê, mas o mar é insubstituível. O mar transmuta-se em tudo o que o céu mandar; muda de cor que nem camaleão. Olhar pra ele é quase que nem olhar pra dentro, né não? Uma massa informe de algo que dizem que é água, revolto, tudo-menos-azul, hipnótico. Mas ainda assim dizível, ao contrário da gente. Quisera eu ser um mar por dentro.

Caminho por uma planície esquisita. Amarela, laranja; pó. O céu é azul, mas não conta. É só pó, terra, pedra. Nada passa muito do vermelho, do alaranjado. Até o verde do cacto incidental é meio não-verde; aquele pior verde de todos, quase preto. Caminho com um sol amigo, tranqüilo, não queima muito. Está fresco. Mas quem disse que o frescor é alento pra alguma coisa? O horizonte continua na sua vermelhidão, e dá dois passos para cada passo meu.

Autoretrato. Filme vagabundo, máquina descartável. Fotógrafo bêbado e inábil. Ambiente escuro. Rosto oleoso, flash entorpecente. Veja, não há como fugir do fracasso. E não sorria, pois decerto há feijão – ou couve – entre os seus dentes. Essas coisas mecânicas e tecnológicas são implacáveis. Gosto delas.


Pôr-do-sol visto entre prédios. Nada mais deprimente. Só não é pior do que o visto das avenidas largas. Aqueles que você tem que baixar o pára-sol para poder continuar dirigindo. Vê se pode? Uma coisa tão bonita num lugar tão errado.

O garoto corre pela viela. Uma daquelas do Rio Antigo, onde ainda passam carruagens e senhores de monóculo e relógios de bolso. Devia ser um tempo em que diziam “São XV horas”, em vez de “São 15 horas”. O rapaz corre, meio sujo nas bochechas, porque brincou bastante. A viela é estreita, a cidade é quente e os feirantes têm bafo, mas tudo tem um colorido e uma harmonia quase pictóricas. O garoto corre, está atrasado para a partida de bola de gude. Estudar pra quê? Namorar que nada. O rapaz só corre pela cidade suja, e só o que ouve é o tilintar das bolinhas no bolso.

Cansaço. Cama desarrumada, persianas meio fechadas – Meio-dia! –, um copo d’água pela metade ao pé da cama. Luz amarelada, paredes sujas de mosquitos mortos há décadas. Fossilizados, como o rapaz que espreguiça. Meio-dia. Levanta, e vai viver sua meia-vida.

sexta-feira, maio 12, 2006

Exigente

Pra mim música mesmo é o barulho dos dedos arrastando no metal das cordas graves do violão, quando o músico passeia pelo braço do instrumento, trocando de notas, acordes e devaneios.

Pra mim futebol mesmo é o caminho que a bola faz depois de tocar na rede - gol! -, ou então o sino de igreja que é aquele balaço explodindo na trave.

Pra mim chuva mesmo é aquela que cai de repente, mais espessa que chocolate, molha o que tem de molhar, e depois deixa o mundo cintilando.

Pra mim beijo mesmo é aquele que vem de repente mas é tudo menos surpresa. Beijo que é o arremate de um tempo indefinido de toques "involuntários" no braço, elogios seguidos de amenizadores gracejos, abraços e carícias insuspeitas, e toda aquela parafernalha do fingir escancarado. Beijo mesmo é quando a farsa vira fato.

domingo, abril 30, 2006

Coisas que só a chuva...

Hmm, sabe quando a gente pára no meio da rua e não tem mais certeza de que o que a gente pensa é a gente que pensa mesmo? Pois é, dura pouco, não é? São momentos raros e dolorosos, nos quais toda a nossa vaidade é posta à prova. No entanto, como ninguém é de ferro, nossa vaidade geralmente é à prova de balas. Dura pouco, então. Mas o suficiente pra manchar o funcionamento do cérebro durante o resto do dia. Faça uma tomografia depois de uma coisa dessas. Médico, pensativo, coça a careca: “Uma mancha roxa aqui... Roxa?!”.

Pois é. Mas no dia seguinte, passa. Sempre passa, talvez até antes disso. De repente, quem sabe, não tem mancha roxa nenhuma. Médico, sorridente, alisa as madeixas: “Senhor (a), nunca vi um cérebro em mais perfeitas condições.”. E você volta pra casa, ou pra conversa, e continua numa boa, soltando opiniões e, se você é dado a isso, até aforismos. A roda de bate-papo sorri, ou protesta, mas o resultado é sempre positivo. Não existe má verborragia, assim como não há má publicidade.

Mas olha só. O Totonho esperava o 267 debaixo de chuva. Que dia para ir à Cidade! Totonho era só apelido. Por mais que a criatividade brasileira para corte e colagem de nomes seja fascinante, ela tem os seus limites. Totonho é apelido de Antônio, carioca, carpinteiro, 42 anos. Esperava o ônibus, e refletia sobre o noticiário, com o cabelo grisalho encharcado, caindo-lhe sobre a sobrancelha. Tinha toda uma série de opiniões sobre tudo de que tomava conhecimento. O Lula, o mensalão, o Bush, o Fluminense, a Igreja, até o casamento do Ronaldinho. Era feliz com elas. Sim, eram todas opiniões humildes, ele sabia que não era capaz de coisas muito mais do que simples. Até a sua carpintaria era simples, reta, sem muita enrolação. Mas eram dele, e o completavam. Porque opinião, por mais idiota e incoerente que seja, tem que existir. Não por determinação moral daquele que escreve esse texto, mas porque eu acho que é fisicamente impossível que não exista. Sei lá, opinião é aquela coisa branca que veda cano. Só que na cabeça. Se não tiver, vaza massa cinzenta. Imagine massa cinzenta vazando. Morre, não morre? Então.

O que aconteceu é que, enquanto caíam gotas de chuva da ponta do seu grande nariz, o Totonho olhou para o seu grande nariz; e pronto. Resolveu pensar um pouco sobre si mesmo. Assim simplesmente, uma metafísica bem singela e humilde. Começou se perguntando por que é que ele tinha de ter um nariz tão grande. Daí pro “de onde viemos, pra onde vamos?” é um pulo. Em dia de chuva, meu amigo, acontecem milagres intelectuais. E nada do 267 passar. Quem pega o 267 sabe. O 267 foi feito pras pessoas pensarem na vida mesmo. Porque pra pensar na vida precisa-se de tempo, e o 267 é a personificação do tempo. Do muuuuito tempo.

Eita madeira, que estou divagando que nem mariposa que invade pela janela! Mas tudo bem, ele não pegou o ônibus ainda. Coitado, mal sabia que o 267 enguiçara no Mato Alto. Teve, e isso anulou a impaciência rotineira da espera, uma súbita sensação de ser idiota. Não conseguiu responder a uma pergunta aí, não importa qual seja; uma das bem escabrosas; desejou ter estudado mais. Depois pensou que o pessoal da televisão tinha estudado mais. E depois pensou na Fátima Bernardes conversando com Deus, tentando argumentar, toda fofa como só ela, como o sentido da vida proposto por Ele não era lá muito bom. Pois é, e aí ele meteu uma palavra que aprendera há muitos anos atrás, mas que só recentemente começara a usar mais, depois que leu uma matéria no Extra: e o sentido da sociedade, essas coisas? Assim como a vida, tem um sentido né? Tem que ter. Pelo menos as regras e tal, pra comunidade viver melhor. O que é certo, errado. Nossa, que o Totonho tava demais, debaixo daquela chuva! Quem passasse, devia achar que estava drogado, ou maluco. Olhar vidrado, um sorriso meio desfeito congelado no rosto, água pingando. Mas estava só pensando, coitado. Isso é cara de pensar! A água é só pra compor o cenário.

Riu pra si mesmo, lembrou de novo da Fátima Bernardes conversando com Deus. A diferença dela pra ele, além de alguns milhares de reais, era que ela falava na televisão, e ele não. Tinha aquele outro que falava difícil, o Jabor. Ele é exemplo melhor, porque ele sempre fala sabendo das coisas. Ele sim deve conversar com Deus. A Fátima, uma sobrinha dissera, só lê numa telinha o que tem de falar. Mas mesmo assim ela é estudada, lida, deve ter opiniões também. Talvez ela ensine pro Jabor. Mas quem disse que eles sabem das coisas? Eles só parecem que sabem, porque estão lá engravatados. Mas é opinião, tudo é opinião.

Eu tenho as minhas convicções também, mas será que a minha opinião é a minha mesmo? Ora bolas, o Totonho nunca foi na Palestina. Nunca viu um judeu, a não ser aquele sovina do Alberto, que não era judeu porra nenhuma, mas se dizia judeu. Onde já se viu judeu preto? Mas mesmo assim o Totonho tinha uma opiniãozinha qualquer sobre a tal guerra. E aí ele lembrou da improvável cena da Fátima conversando com Deus, e se sentiu magrinho, magrinho. Lia jornal sempre, sempre via TV, escutava rádio. Já leu até um ou dois livros, gostava de cinema. Essa porra toda é a cabeça dos outros cuspida pra cima de mim! Se sentiu quase sumindo do mapa, de tão fino. E a mancha roxa crescia dentro do seu cérebro mole de tanto sacudir em ônibus. O pior de tudo é que ele não nem tinha alternativa. Era o cuspe da cabeça dos outros ou o completo vácuo. Ele nem iria entender nada quando o Alberto falasse que era filho de “Israélicos”. Que porra é essa de judeu, ele iria se perguntar. Mas por causa da Fátima ele sabe o que é um judeu. E judeu não é preto. Ou será que é?

Caiu sentado no meio-fio. Puta que pariu, será que judeu é preto mesmo? Agora ele já não sabia de mais nada. Já não tinha mais “cara de pensar”, como há alguns minutos. Tinha cara era de maluco mesmo. Sabe desenho japonês, que quando o cara morre o pontinho preto do olho fica pequenininho? Então, o olho do Totonho ficou assim; mas ele não morreu não. Viu que tudo que ele pensava sobre o mundo vinha de esquisitos sinais desenhados sobre papel, ou então sob a forma de sons articulados, e imagens que reproduziam o que seus olhos viam. Nada vinha de dentro dele mesmo. Não tinha nada pra coisa branca que veda cano vedar. Nadinha. Nem tinha o que a mancha roxa manchar. Sentiu a cabeça leve, juro; quase flutuante. Levantou, com olhos que nem desenho japonês ainda, atravessou a rua vazia, balbuciando incoerências. E nada do 267 passar.

sábado, abril 29, 2006

Manel e seu coração

Olha que inusitado. O Manel aquele dia acordou querendo dar um abraço. Tem diferença. Receber um abraço todo mundo precisa de vez em quando. Uns, mais desesperados, precisam todo dia. Aquele dia o Manel acordou e precisou diferente. Em quem, ele nem sabia. Queria era abraçar, talvez até beijar a testa desse qualquer-um sem nome. Eu nunca vi alguém acordar assim tão doce, e o Manel não tinha nada de doce. O Manel era careca e meio fechadão, só sorri de piada suja. Seu melhor amigo é a cerveja, é solteiro, torce pelo Flamengo. Se ainda fosse pelo América... Seria um sinal de que ali dentro tinha uma alma saudosista, poética e sensível. Mas não, era Flamengo. Garra, urubu, cerveja no sofá mesmo, coçando a virilha. Discutia horas com o vizinho tricolor.

O engraçado era que se o vizinho tricolor batesse na porta naquele momento, o Manel tascava-lhe um abraço. O vendedor de aipim também. Ia ficar tão surpreso que as mandiocas todas iriam cair no chão. Abraço do Manel é forte. Só quem já sentiu foi um ou outro parente, no enterro do pai. Mesmo assim foi abraço duvidoso, abraço no outro mas que é em si mesmo. Abraço em espelho, porque espelho mesmo não dá pra abraçar.

Tenho que repetir que dessa vez era diferente. Manel ali, no banheiro de azulejos azul-claros, escovava o dente e sentia aquele apertinho no coração. Aquele que a gente sente quando não alcança algo que está bem perto da gente. Coração do Manel é grande; coração de boi, cavalo, esses bichos fortes e que só olham pro próprio estômago. Mesmo assim apertou, de solidão. Mas não solidão de carência de atenção, de amor. Não: foi é a pior solidão que existe. A solidão de estar no meio de um monte de gente que quando se toca pede desculpa; aquela que o único culpado é a gente mesmo, porque se está sozinho é porque passa a vida toda só dando tapa nas costas e fazendo brincadeira. Solidão de sentir frio.

Manel tinha quase 50. Tomava seu café puro, sem açúcar, e o pão com manteiga, dormido. O aperto no peito não parava. E isso tinha que vir agora, depois de meio século de vivência? Manel podia muito bem ter passado batido, até o fim, incólume, só fazendo piada suja. Alguns até riam delas. Tinha graça, o Manel. Pra ele, português era máquina de fazer burrice, e o Joãozinho o filho que nunca teve. Mas já divago. O que o Manel lamentava, entre as dificultosas mastigadas no pão do dia anterior, era que ele poderia dormir sem essa. Ou melhor, acordar sem essa. Porque o Manel, veja – e isso é importante -, nunca foi um cara infeliz. Gordo e peludo, talvez. Mas infeliz, nunca. Imagine então que o Manel morre aos 62 anos, de um bom e gostoso ataque cardíaco, que te leva embora sem nem dar tempo de gritar “ai!”, quanto mais de maldizer a morte. Manel teria ido feliz; quem sabe no dia anterior não teria inventado uma nova piada sobre travestis? Sessenta e dois anos de vida, muita cerveja e vitórias do Flamengo, amizades de domingo e de segunda-feira também.

Mas não. Tinha que acordar assim aquele dia, mesmo sem ter bebido no anterior. A sua gorda vida tinha que ter um calombo justo agora, quando já se encaminhava pra parte da descida. O pior era que não tinha explicação. Alguma. Sentado na cozinha, olhar preto vidrado no nada, não tinha motivo nenhum praquilo. E doía mais apertado o coração. Quis até ligar pra mãe; não sei por que não o fez. Vergonha, né? Tem gente que não tem vergonha de falar putarias em público, mas tem vergonha de abraçar mãe e pai. Vá entender. Manel, repito, não ligou. Ligou pra ninguém. O aperto no peito foi tão forte que ele quase chorou. E olha que nem era dia nublado.

Nesse dia o Manel não foi trabalhar. Dia seguinte também não. A dor no peito se espalhou pro braço, e aí já viu, né? Pois é, enganamo-nos – Eu e Manel. Ele morreu às 08:43 do dia 7 de março, uma terça-feira. Morreu como queria morrer aos 62 anos, sem nem saber direito o que aconteceu. O problema é que foi-se embora na ignorância, achando que era melancolia o que lhe afligia. Não sei se é triste ou engraçado. Essa vida...

domingo, abril 23, 2006

Enquanto isso nesse blog aqui...

Rua poeirenta, sol forte; silêncio. Muito vento. Passa uma bolinha de palha, rolando, feliz. Ser humano que é bom, nada.

quinta-feira, abril 20, 2006

Fotograma

Olhou atentamente naquele espelhinho sujo que todo mundo tem quando procura um suposto defeito na própria alma. Sentou na cama, cansado, não viu nada de errado. Nada. Se fumasse, acenderia um cigarro agora. Se bebesse, encheria a cara. Se conseguisse dormir...

Acho que todo mundo já passou pelo parágrafo acima alguma vez na vida. A diferença é que alguns fumam, outros bebem, e quase todo mundo dorme. O rapaz aí em cima não. Se você tiver a paciência de esperar, uma, duas, cinco horas, vai ver que ele nem se mexe. Que porra é essa de dar tudo errado? Quer dizer - ele corrige-se -, não é que dê tudo errado. É que antes de qualquer coisa mesmo esboçar "dar" alguma coisa, já não dá mais. Entende? Não, né. Nem ele mesmo, coitado. Essa idéia passou muito rápida pela cabeça dele pra que ele pudesse domesticá-la. Fica nisso aí, você faz o que quiser da idéia.

Aí, eu não disse? Ainda está ele na mesma posição. Até o abajur na mesinha de cabeceira - aceso não sei por que, já que é dia - mudou de posição. ("Venta muito." É a desculpa que encontrei pra fazer um objeto inanimado mudar de posição). E ele lá, nadando no nada. Nada mesmo, porque já até desisitiu do espelhinho sujo. Sabe de uma coisa? Virou foto. É isso, boa imagem. O rapaz virou foto, por isso que não se mexe. Tadinho.

quinta-feira, abril 13, 2006

À Noite e Eu

Essa noite eu não durmo não. O que é o sono perto da imensidão do mundo? Essa noite, a falsa quietude da cidade pulsa nas minhas têmporas: tum, tum tum; é quase uma dor de cabeça. Olhe pela janela, leitor: o silêncio da noite carioca é um convite à insônia. Me imagino morcego, voando sobre os telhados do Rio de Janeiro; ou Sydney, Havana, Riad: os morcegos são os mesmos.

As cores das luzes da cidade sempre fascinaram esse morcego aqui. Os raios amarelos das lâmpadas de mercúrio, os vermelhos das dos freios e o verde das fluorescentes: todas elas, refletidas na carroceria dos carros, me fazem ainda mais morcego. Sobrevôo o branco esverdeado da iluminação de um posto de gasolina, e ponho-me a pensar: tentativa de frustrar a escuridão? Que nada. Todas as luzes são um brinde, uma coroação à Noite. Enfeitam-na com frios adornos. Silenciosos, porque luz não faz barulho. E aí o silêncio nos convida a sorrir pra dentro, aquele sorriso tão negro quanto a própria noite. Sorriso negro sim, só nosso. Daqueles que não se compartilham e é bom assim. Se você nunca sorriu assim, vá fazer outra coisa: esse texto é para os gourmets da solidão noturna.

Tum, tum, tum. Deixo-me vestir de negro e finjo que o mundo dorme, para que ninguém me veja e eu seja o senhor de mim mesmo. Vôo, não olho pro céu; é pra cidade que me atraio; mergulho numa avenida qualquer. Vazia, conforme eu previra – ou comandara. Empoleirado em um velho outdoor, divirto-me com o sinal vermelho, verde, amarelo. Nenhum carro passa, nem vai passar, porque eu disse que não. Só quem passa é o vento, levando três ou quatro arrepios de espinha.

A brisa da noite carrega também papéis – escritos, impressos, pintados... Essas coisas diurnas. Em pequenos redemoinhos, eles dobram uma esquina próxima. O vento é bom pra passar essas coisas rápidas pela nossa vida. Logo somem.

Ali perto, um som de ônibus parando. Ou bem longe. Nessas horas escuras as distâncias enlouquecem. Som mesmo, mas não quebra o silêncio; é concessão minha nesse teatro de solidão. Em algum lugar, o ônibus parou e chiou. Mas é lugar nenhum. Em lugares nenhuns é que os ônibus param nessas horas tão madrugadas. Só me asseguram de quanto estou longe de tudo. O motorista fantasmagórico espera, impassível, o sinal abrir. Amarelo, vermelho, verde... Há que se dar um mínimo de verossimilhança às nossas imaginações.

Levanto vôo de novo. É dos telhados que realmente gosto. Imagine poder subir 100 metros acima de uma metrópole e gritar a todos pulmões? Há delícia maior? Pois esse morcego pode tudo. Brado sobre a cidade teatralmente adormecida. Obviamente, ninguém desperta. O Rio de noite é só eco. Meu sorriso negro alarga-se; vôo em direção ao mar.

Tão alto e macio quanto o céu é o mar noturno. E eu sei de onde vem o mar. É tantas vezes a noite caindo; de novo, de novo. O mar é o acúmulo de todas as noites que já existiram na Terra. É isso que nos conta aquele jeitão escuro, a superfície áspera e aquele cheiro salgado. E é para ele que me dirijo agora; de morcego para golfinho, me deixo livre no ar – cair é melhor do que mergulhar. O mar me aceita, e eu me deito no seu colo indefinido. Ali, no meio do nada, nada se enxerga, nada se ouve; ali, quase nada se sente, a não ser as têmporas pulsando o velho “tum, tum, tum”. Ali se sorri pra dentro. É... O mar, sem dúvida, é filho da Noite.

Onde que vai parar essa viagem? Oras, a resposta é óbvia: na aurora. Inevitavelmente, o sol vai raiar. Em minutos, talvez; horas, tomara. Vai ser tempo de voltar pra casa empapado de maresia, e com um olhar meio torto. Nada mais triste do que o café-da-manhã depois de uma experiência dessas. O cheiro de pão nessas horas me enoja; aquele cheiro tão morno quanto a noite foi fria, que só serve pra me meter goela abaixo as frases “À noite, dorme-se. Nada de poesia. Está na hora de trabalhar.”. Como sim, tomo até leite junto. Levanto e vou viver o dia. Mas saio desconfiado, achando que o dia é que foi feito pra ser dormido.

Aí, na boa

Qualquer e-mail que começa com "SÉRIO!", "Não apague!", "É verdade!!!!" etc, está pedindo para ser apagado. Um motivo para cada exemplo: 1) Palavras inteiras em letras maiúsculas são um ótimo cartão de visita... pra jogar na lixeira. 2) Todo mundo sabe como a gente adora desobedecer uma ordem. 3) Me recuso a ler qualquer coisa de alguém que usa mais de 3 pontos de exclamação de uma vez.

Estou mau-humorado mesmo. É que a noite está quente. Noites foram feitas para serem frias, ora bolas. E tenho dito.

terça-feira, abril 04, 2006

Como se fosse ontem

O quarto é úmido, é dela. Antes de entrar lá, eu já sabia. O quarto é escuro, meio arroxeado, e a cama é de ferro. Sabia, sabia assim que vi os olhos grandes. Essa mulher é dona de um mundo só seu, uma masmorra, um cárcere abafado. Antes do primeiro “oi” eu já via a enorme e austera cama de casal, metálica, antiga, absoluta; sabia que era a cama dela e que ali não tinha volta. Quem nunca foi adivinho que atire a primeira pedra.

Uma pessoa prudente, portanto, jamais teria dito sim, jamais teria olhado nos seus olhos. Mas “prudente” é um adjetivo que só existe escrito; nunca vi homem nenhum estampá-lo. Fui mesmo, caminhei por entre prédios na madrugada, bebi licor com ela, e me vi refletido nos seus grandes olhos, me vi preso nos seus cabelos. Parece que já sabia de tudo que ia me acontecer. Mas então, eu me pergunto, algum dia de fato eu já fui pego de surpresa? Ou será que a gente sempre sabe o que nos espera? Tenho sempre a impressão de que sei exatamente pra onde estou indo, mesmo que, sei lá, caminhe de costas. Quando paro pra pensar nisso, é aterrorizante. Mas quando vivo e caminho, nem tremo. No viver, o que acontece é que, a adivinhação, a gente sente lá no fundo, daquele jeito que, se perguntar, a gente não sabe responder. Mas que a gente sabe o que é. Ah, como sabe!

E eu não sabia? Pois já via tudo, escrevia toda a História antes mesmo de acontecer. Caminhava do seu lado, hipnotizado pelos fartos cabelos pretos. Ela andava sem olhar pros lados, sorria pra si mesma, escondia-se nos seus cabelos. E eu perdido, contava as rachaduras da calçada. Pra que olhar pra ela, se eu já a tinha descoberto toda? Ela era dona daquele quarto úmido e arroxeado, ela era aquela cama metálica. Metal para quem é metal; madeira para quem é orgânico.

O dia começava a terminar, eram umas cinco da tarde. Dia nublado, todo manchado de cinza, sem sombras. Imagine quanta majestade ela tinha num dia desses! Alta, nem tanto quanto os prédios, mas mais imponente do que toda a avenida. Era mais aço do que todo o quarteirão. Dava pra ver nos grandes olhos, e ter certeza lá dentro dos cabelos. Eu: mil vezes adivinho.

É o tipo de coisa que só acontece uma vez na vida. A gente sobe as escadas, e já sabe quanto degraus têm. A gente sabe que porta que é, e a textura da cama. A gente sabe quantos minutos resiste até a coroa de fios negros nos sufocar. Só uma vez. Antes disso, só preparação. Só uma vez, então? É que, cada vez que acontece, começa uma vida nova. A alma velha fica lá, enredada nos fios negros da vez. E a gente vai indo, vindo, contando as rachaduras da calçada. Até que veja tudo de novo. Ela, olhos grandes abertos, cabelos negros e volumosos, sorriso escondido por eles. Ela convida antes mesmo de chegar perto. Eu aceito, recordando todas as mortes anteriores. Lembro de tudo que vai me acontecer. Como se fosse ontem.

terça-feira, março 21, 2006

A alguém

Sou uma mulher imprecisa. É melhor avisar-te logo, caro senhor, para evitar que rasgues essa carta já na quinta ou sexta linha. Sim, sou uma mulher indefinida, vaga, ligeiramente aquosa. Portanto, tenha calma, e faz o que quiseres com isto. Não é importante que ouças, mas é essencial para a minha sanidade que eu diga.

Serei direta: amo-te. Soube ontem, por volta das oito e meia, na terceira dose de vodca. Dizem que o álcool nos enevoa o juízo; eu digo que ele nos dá um quê de pitonisas. Falo por nós, mulheres. Os homens estão longe de suas fronteiras; sempre capitais. Ademais, eles resistem melhor à embriaguez. Já nós, mulheres, estamos sempre no limite de nossas imprecisões, e qualquer pequeno empurrão nos faz cair. No abismo de nós mesmas.

E eu caí de cabeça. Mas não digo que tenha sido uma epifania. Estas são místicas, levemente divinas. Eu despenquei foi num poço de entranhas e lama. Lá, eu vi todos os homens que passaram: pela minha cama, pela minha rua; pelo meu ventre, pelo meu pensamento. Amei todos eles. Alguns com fogo, outros com sonho. Às vezes o amor morava no sangue; outras nos fios de meu cabelo. Como vês, amei demais.

Entretanto – não se assuste, lindo rapaz -, jamais amei como a você. Sim, você. E mesmo quando o meu coração e o meu sangue – ou os insensíveis fios de cabelo – eram dos outros, eles eram também seus. Pois eu o amo desde o primeiro dia em que não o vi. Você, lindo rapaz; tu, caro senhor, que talvez...

“Talvez”, que nada! Meu abismo me diz que você não existe. Mas sou uma mulher imprecisa. E acho que espalhei um pouco de ti por todos os homens de minha vida. Você, que não tem olhos, boca ou livro predileto. Tu, que és tão impreciso quanto eu mesma; sem nem mesmo um pronome pessoal definido; aquoso como meu abismo; curvo como um espelho retorcido. Um espelho...

Digo, já pela terceira vez, que sou uma mulher imprecisa. Como um espelho. Podes imaginar, caro senhor, um espelho impreciso? Assim o são todos os espelhos de mulher. Assim é você, meu lindo rapaz. Um espelho tão vago que eu nem me reconheço mais. Espatifei você. Espalhei teus cacos, antes mesmo de me ver lá dentro. E só agora, com a ressaca da bebedeira de ontem, é que começo a ver. Um pedaço aqui, outro acolá; alguns nos meus – sempre insensíveis – fios de cabelo; muitos outros na corrente sangüínea. Terei como juntá-los? Mas não, cacos não se juntam. Cacos se jogam fora, se esquecem; pelo menos até o próximo porre.

Obs: Bernardo não mudou – nem pretende – mudar de sexo.

segunda-feira, março 13, 2006

Pequena parábola - Parte II

... o Remela foi brincar na casa do Pedrinho. O Remela... Bem, o Remela era o grandalhão da vila, e, como todo grandalhão das histórias, sua burrice era do tamanho da sua força, que era impressionante. Admirável também era a quantidade de secreções que saíam de seus olhos, nariz e ouvidos, e o que ele fazia com elas. As garotas não gostavam nem um pouco, mas quem liga pra elas?

Aproveitando-se da “lentidão” do vizinho, Pedrinho logo convenceu-o da inferioridade tecnológica de seu exército, que, apesar de contar até com o último modelo de helicóptero de combate, não tinha o “plus a mais” proporcionado pelos engenheiros químicos do inimigo. A tropa do Remela foi trucidada rapidamente. Turbinada pelo “combustível atômico” Aerolin, a cavalaria blindada de Pedrinho agiu com uma mobilidade de dar inveja a Rommel. Logo Remela foi cercado, e sua superioridade aérea não pôde fazer nada contra as rajadas de Rinossoro da artilharia antiaérea do adversário. Uma vitória decisiva.

Atônito, o Remela olhava para o campo de batalha. Perto de um dos pés da mesa de centro, jazia o todo-poderoso helicóptero, que ganhara no último Natal; não houve sobreviventes. Enquanto isso, no acampamento adversário, os médicos aplicavam comprimidos de Claritin D nos ferimentos dos soldados, que logo ficavam de pé. Assombrado, o Remela perguntou: “Onde você arranjou isso tudo?”. “Segredo de Estado, Remela”, Pedrinho respondeu, sorrindo. “O que eu não daria pra ter um arsenal desses também...”, suspirou o Remela, enquanto guardava, sem o menor cuidado, seu helicóptero de volta na caixa. “!”, acendeu-se a luzinha na cabeça do Pedrinho, que teve sua primeira grande idéia. “Você é um gênio, Remela!”.

domingo, março 05, 2006

AAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!

Que foi? Nunca teve vontade de gritar não?

sábado, março 04, 2006

A volta pra casa

Saudei o pardalzinho na esquina da minha rua. Cada mancha escura nos muros das casas! Do que são feitas? Umidade, talvez. Mas, lá dentro; acho é que surgem da vida de sem-mais-querer dos suburbanos. Eu via.

É que a gente mais percebe a tristeza do mundo quando está demais feliz. Pardalzinho me saudou de volta. Ê, pardalzinho bonito! Somos nós dois no topo do mundo, e esse povo com manchas nos muros... Aquele dia, se eu quisesse, te juro que voava igual um pardal. Era só estalar os dedos e pensar nela, e lá ia eu, voando de pouquinho em pouquinho, um galho aqui, um poste ali – pra não cansar – e voltava. Porque pássaro é isso aí; voa porque é leve de alegre.

Não se estranhe com o meu dizer as coisas assim, meio solto. Mas assim que é a vida da gente. Eu narro aqui uma descida de rua – da esquina até a minha casa; enquanto desço, a minha vida toda revolve em si mesma, dentro da minha cabeça, em menos de 200 metros. Como pode? Ah, se pode! Penso no pardalzinho, na prova de geografia da 7ª série e até na batata grande que vi outro dia no mercado. É tudo assim, espalhado, que nem lixo na rua depois da Comlurb passar.

Mas principalmente eu pensava era nela. Pensamento da gente acho que precisa de algo que junte tudo e dê sentido. Porque senão a gente acaba até morrendo, imagino. E era ela que agregava todo o meu sentir e pensar, e não tinha prova da escola de toda série que fosse que não tinha ela no meio. É isso aí. Fragmento é só ilusão. Na verdade está tudo ligado, perfeito sedimentado em coerência. Isso eu vi depois que o pardalzinho voou. E tinha as manchas no muros; só tinha tristeza nelas porque tinha eu no topo do mundo.

Eita, mas que isso era parágrafo pra fechar tudo e explicar a maneira de contar desrabiolada. Mas já veio, então aí fica, na quarta posição. Aí eu já descia, passava pela frente da casa do velho que nunca saía da porta. Nunca tinha dado bom dia praquele velho, que sempre pareceu olhar pra mim com cara de vô. Ê, vô! Nunca tira o pijama, ele. Parece que acordou de um pesadelo e veio encontrar a juventude na porta, batendo. Pesadelo real; ele era desremediadamente velho mesmo.

E eu jovem. Eu amante e amado, voltava do céu. Passei pelo vô, não dei bom dia não. Três passos atrás eu teria saudado, que nem com o pardalzinho. Engraçado os ânimos da gente; mudam com dois metros de caminhada. Eu já pensava nela de novo, e no beijo roubado no meio do jardim. E o beijo fechou o dia, e fechou minha vida: ali eu podia morrer satisfeito. Sabe quando a gente se sente em casa? Eu me sentia no céu. E o céu é a casa de todo mundo.

Uma vez eu vi Deus no céu, te juro. Não lembro se era verdade sonhada ou acordada, mas o que é certo é que era Deus, e que ele era cor de abóbora; uma fumacinha assim, meio Fanta Laranja. E aí eu não lembro mais nada. Sei que falou comigo, me deu missão, me xingou, contou piada, sei lá. Mas ele falou, e agora, a 50 metros da casa, lembrei que ele falava era dela, e do beijo no jardim. Lembrei, quer dizer, meio na cara-de-pau. Lembrança é sempre fragmento, e sempre mentirosa. Porque, note, recordação é pensamento como qualquer outro, e – veja a explicação que está lá, na quarta posição – pensamento de ser humano só ganha sentido por outro pensamento. Bicho pode até pensar diferente. Mas homem é assim.

Então eu era isso? Tudo o que vivi não tinha sido nada – monte de pedacinho voando à toa – até que chegasse um anjo que me deixasse roubar um beijo no jardim? Acredito que sim, e não tenho vergonha não. Tem gente que passa a vida toda que nem fugindo da chuva: de cabeça abaixada, correndo, com medo de juntar seus caquinhos de viver. E tem gente que não roubou beijo no jardim, e junta seus fragmentos num sem-mais-querer suburbano. Dá mancha nos muros. Mas eu não. Cheguei em casa, recém-pintada. Pardalzinho me esperava no portão. Ê, pardalzinho bonito!

quinta-feira, março 02, 2006

Pequena Parábola - Parte I

Enxotado, com as roupas puídas, arruinado, Pedrinho chorava que dava dó. Mas sua mãe só iria voltar bem mais tarde, e ele, na falta de colo, tinha que se contentar em chorar na sua cama com colcha do Batman. Como havia chegado a esse ponto? Ele não se conformava.

***

Tudo começou quando, um dia, a correspondência chegou, e sua mãe não estava em casa. Entre contas de telefone, água, luz e anúncios de promoções no mercado da esquina, lá estava uma caixinha de papelão. Hermeticamente embrulhada num plástico transparente, endereçada à mãe e sem a menor pista de seu conteúdo, era demais para resistir.

Primeiro cuidadosamente, tentando rasgar com o canino as bordas do plástico, depois, já bem impaciente, arrancando tudo que o impedia de abrir a caixinha, Pedrinho olhou seu conteúdo. Ah! Então era assim que mamãe arranjava tanto remédio!

Aqui cabe um parêntese. Ei-lo: (A mãe de Pedrinho era médica e, como tal, recebia regularmente uma certa quantidade de amostras grátis.)

Embalagens verdes, amarelas, faixas vermelhas; comprimidos, conta-gotas, colheres de plástico. Tinha de tudo dentro da caixinha; Pedrinho ganhara na loteria. Suas brincadeiras haviam recebido um “plus a mais”, como dizia sua irmã.

Logo seus bonecos, em suas intermináveis guerras sanguinárias, tinham que lidar com um arsenal extenso de armas químicas, perigosíssimas para a vida na Terra. Se aquele tubo de Eritromicina caísse em mãos erradas... E quantas vidas foram salvas porque o médico do pelotão tinha uma ampola de Buscopam nas mãos? Como podemos ver, a única conseqüência do achado do Pedrinho havia sido o avanço tecnológico de suas tropas combatentes. Até que um dia...

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Quatro parágrafos bobos

Abre parêntese: felicidade não é verbal; muito menos poética. Não é metafórica ou metonímica, nem aceita adjetivos. Felicidade é quase - tão quase - burra. Ou iletrada.

Felicidade nem se chama felicidade; mudou seu nome já faz tempo. Hoje em dia, ouvi dizer que corre por aí, nas casas dos pobres e medíocres, enquanto os poetas... Bem, os poetas são inteligentes demais; estúpidos. Analfabetos em vida.

O sol já vai indo e ela com ele. Para onde? Para os pagodes e boates, novelas e bailes funk, brincar de se esconder e achar, sem documento algum que não o da simples existência. Ela é só danças e erros de ortografia ou dicção. Felicidade não se escreve nem se diz. Não é à tôa que beijos não falam.

Felicidade é canhota. É lápis mal apontado, desenhando bonecos na carteira durante a aula. É trêmula, cheira a perfume barato, mancha a roupa se não colocar de molho. É feijão com estronofe. Precisa de calculadora para calcular, talvez nem saiba assinar o nome. Mas sempre a usam pra fechar parêntese.

sábado, janeiro 28, 2006

Exumação

Esse texto aqui cheira a mofo. Trata-se da minha primeira - e única - coluna para uma malfadada empreitada que tive no início da faculdade: o 30segundos.

A simpática idéia consistia em um programa na tv universitária + um site cujo tema fosse a publicidade. Ambos não foram à frente, e não sinto muita falta, vista a minha quase ojeriza à publicidade hoje em dia.

Mas o texto não é mau. Ignorem os erros de pontuação. ; )

A Primeira Vez

Tenho o orgulho e a honra de publicar o primeiro de muitos textos do 30segundos. Como já ficaram roucos de tanto dizer: "A primeira vez a gente nunca esquece". Pois é. Experiências novas sempre nos marcam, sendo elas prazerosas ou intensamente dolorosas.

Quem não se lembra da primeira vez que foi picado por uma abelha? Eu me lembro. Estava na piscina de um clube, nadando, feliz com minha infantil ignorância sobre o ferrão desses animaizinhos. Quando fui sair, apoiando minhas mãozinhas tenras nas bordas da piscina, um levado zangão (ou abelha. Sei lá, é tudo igual.) que tomava sol por ali resolveu me machucar. Deleitando-se na sua eterna maldade selvagem, meteu-me um ferrão na palma da mão direita. Tudo bem, eu o estava esmagando com a força que fazia para sair da piscina, e você pode argumentar que ele não teve tempo para pensar direito, pois estava morrendo, mas eu ainda hoje acho que ele fez aquilo por prazer. Desnecessário dizer que chorei que nem uma criança (afinal, eu era uma criança) frente àquela dor lancinante. Fiz uma cena, meu pai veio e espremeu o ferrão da minha mão. Depois daquele dia, passei a olhar aqueles bichinhos amarelos-e-pretos com um misto de respeito e temor, e também nunca mais tive simpatia pelo time do Criciúma.

Também existem aquelas primeiras vezes memoráveis, de tão maravilhosas. Alguém aí se esqueceu da primeira vez no Maracanã (isto é, alguém que tenha ido ao Maracanã)? Eu não. Lá pelo final dos anos 80, ou início dos anos 90 - não me lembro bem - meu pai levou seus dois filhos para um emocionante Flamengo x Botafogo. Nessa época, ainda sem a iluminação espiritual que me sobreveio posteriormente, eu torcia para o Botafogo por influência do meu pai. Minha irmã já sofria do mal de ser flamenguista. Pois bem. Lá fomos nós para o Maracanã, que na época tinha estacionamento de pó de pedra, carregando duas bandeiras feitas pelo nosso progenitor: uma preta e branca, e outra preta e vermelha. Bom, quanto ao jogo em si não lembro de muitas coisas, afinal eu era um pirralho, e o resultado da partida até hoje é motivo de controvérsia: minha irmã pode jurar que o Fla ganhou por 2x1, mas eu sei muito bem que foi o Fogão que ganhou por esse mesmo placar. No entanto, o que eu não esqueço é a emoção que senti ao entrar no anel da arquibancada, o me fez me apaixonar de vez pelo futebol.

É claro que também existem aqueles clichês do "primeiro beijo", "primeira relação sexual", "primeiro soco na cara" etc. Contudo, já se falou tanto sobre essas primeiras vezes que seria chover no molhado. E também invadir "Restricted Areas". Como eu não gosto de chover no molhado nem que invadam minhas áreas restritas - sem trocadilho - não vou falar sobre isso. Acho que já deu para dar o gostinho de "primeira vez" nesse site. É o primeiro ingrediente do tempero. O resto da equipe daqui a pouco começa a colocar a mão na massa também, e aí o site vai ficar uma delícia. Até lá, fiquem com o que temos agora e cuidado com as abelhas quando estiverem na piscina!

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Um casal

- Bruno, era camarão. E digo mais: com molho de abacaxi.
- Abacaxi?
- Abacaxi.
- Júlia, esse prato nem existe.

Mas Júlia achava que existia. Não só isso; ela tinha certeza de que fora esse prato que ambos comeram no longínquo jantar do seu primeiro encontro.

- Querida, comemos medalhão ao molho madeira. E eu sei disso por um motivo muito simples: lembro de ter passado quase meia hora pensando em como, sem que você percebesse, limpar a maldita carne de entre meus dentes.
- Ué, camarão também prende no dente. Aliás, abacaxi também.

Ela tinha razão; essa era uma das razões pelas quais ele odiava a fruta. Mas ele tinha um argumento irrefutável:

- Nem sei por que estou me dando ao trabalho de discutir com alguém que confunde a Winona Rider com a Uma Thurman...
- Ai, Bruno! Você é irritante, sabia? Até quando você vai usar isso? Convenhamos, uma pequena confusão dessas não desqualifica a minha memória.
- Júlia, uma é loura e nórdica; a outra é morena e cleptomaníaca. Não há credibilidade mnemônica que resista.
- Você fala de credibilidade, mas não fui eu quem esqueceu 15% dos nossos aniversários.
- Pra isso ela tem uma mente matemática...
- Que bom que você reconhece. Veja: por indução, eu tenho a maior probabilidade de estar correta.
- Ih, não vem com esse papo de lógica não. Quer saber? Em cinco minuto chegaremos ao restaurante, e será tudo esclarecido.
- Isso mesmo! Você vai ver que eles em servem medalhão. O maître resolverá a questão.
- Ou, quem sabe, a Uma Thurman.

Ele riu sozinho, e os cinco minutos restantes foram de silêncio. O mesmo silêncio que antecede as grandes batalhas.

- Chegamos!
- Você vai ver só!
- Teimosa...
- Chato...
- Boa noite! O que os senhores vão querer?
- Camarão com molho de abacaxi, por favor!
- Desculpe, senhora. Nós não temos esse prato.
- Hm, a Uma Thurman deve ter comido tudo...
- Ridículo...
- Como, senhor?
- Er, nada, garçom. Desculpe. Nós vamos querer o medalhão ao molho madeira.
- Lamento, senhor. Mas isso também não está no cardápio.
- Ah, não?
- Não.
- Ahn...
- Mas nós temos ótimas massas.

Comeram o ravioli.

segunda-feira, janeiro 23, 2006

O mistério do jaguar

Algumas estranhezas chegam de repente, mesmo que sempre tenham estado bem na nossa frente. Na nossa cara. Quase nos mordendo.

No meu caso, a expressão correta é “quase caindo na minha cabeça”, porque falo de um quadro que tenho no meu quarto. Trata-se de uma baía, à noite, vista de uma estrada no alto de uma colina. Na pista, em primeiro plano, um magnífico jaguar azul – o carro, pois onde já se viram felinos azuis? – desfila em alta velocidade. Elegantíssimo.

Agora, a questão é: o que faz um quadro de uma máquina que parece saída da capa da revista Quatro Rodas na parede do quarto de um rapaz que mal sabe distinguir um Astra de um Vectra? O que diabos faz esse adorno na casa desse menino, que, aliás, só sabe que se trata de um Jaguar porque foi alfabetizado e pode ler sem dificuldade a palavra “jaguar” no alto da figura?

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Para descontrair

www.chucknorrisfacts.com. Esse blog anda meio abafado, denso e pesado. Como a vida não é só isso, esse post aqui será humorístico. Esse site aí ao lado é uma das coisas mais engraçadas que vi na internet nos últimos tempos. Como o próprio nome implica, trata-se de uma série de grandes verdades acerca do todo-poderoso Chuck Norris (Patrulheiro Walker, Comando Delta etc). Abaixo, uma pequena seleção, entre as centenas de sábios aforismos do site:

- Quando Chuck Norris cai na água, ele não fica molhado. A água fica Chuck Norris.

- Chuck Norris pode dividir por zero.

- Chuck Norris não faz a barba; ele chuta a si mesmo na cara. A única coisa que pode cortar Chuck Norris é Chuck Norris.

- No seu aniversário, Chuck Norris aleatoriamente escolhe uma criança para ser atirada ao sol.

- O show "Survivor" tinha a idéia original de colocar pessoas abandonadas em uma ilha com Chuck Norris. O programa piloto foi um fracasso.

- Bush estava mentindo sobre as armas de destruição em massa no Iraque. Todos sabem que Chuck Norris jamais esteve lá.

- Chuck Norris pode tocar MC Hammer (Pra quem não entendeu, é o cara que fez a música "Can't touch me").

- Chuck Norris brincou de roleta russa com um revólver completamente carregado e ganhou.

- Chuck Norris é a razão pela qual Wally está se escondendo.

- O rascunho original de Senhor dos Anéis tinha como personagem principal Chuck Norris. O livro tinha apenas cinco páginas.

- Se, por algum estranho paradoxo do espaço-tempo, Chuck Norris lutasse consigo mesmo, Chuck Norris venceria. Ponto.

- Nós vivemos em um universo em expansão. É porque todo ele está tentando fugir de Chuck Norris.

- Chuck Norris pode queimar formigas com uma lupa. À noite.

- Chuck Norris não pode amar. Ele pode apenas não matar.

- Foi Chuck Norris que matou o Cel. Mostarda, na Livraria, com um chute na cara. Quem disser o contrário é um mentiroso.

- Godzilla é uma dramatização japonesa da primeira visita de Chuck Norris a Tóquio.

- Não há rosto por detrás da barba de Chuck Norris. Há apenas um outro punho.

- A Grande Muralha da China foi construída para manter Chuck Norris fora. Falhou miseravelmente.

- Chuck Norris sempre sabe a exata localização de Carmen San Diego.

- Originalmente, Chuck Norris aparecia no jogo "Street Fighter II", mas foi removido pelos desenvolvedores porque todos os botões o faziam dar um chute na cara do oponente.

- Um fato médico pouco conhecido: Chuck Norris inventou a cesariana quando ele chutou o seu caminho para fora do útero de sua mãe.

- Em média, existem 1.242 objetos em um quarto que Chuck Norris poderia usar para te matar, inclusive o próprio quarto.

terça-feira, janeiro 17, 2006

Desabafo de uma alma aleijada

Ao amanhecer parto de novo para a batalha. Nessa guerra perdida, não participo por lutar, e sim para morrer a cada dia. Toda alvorada, me dirijo ao campo de combate, acompanhado de um pelotão de fantasmas do meu passado e futuro; invariavelmente pereço. Sim, é uma guerra perdida. Mas não aceito outra existência.

segunda-feira, janeiro 16, 2006

Trilha sonora

Cara-caramba-cara-caraô. Era essa a trilha sonora de sua vida; um emaranhado de fonemas que nem chegavam a ser onomatopéias; irremediavelmente inexpressiva.

Jamais amou alguém a não ser por intermédio de poemas e músicas compostas por outros. Supria a necessidade de palavras com indolência, folheando dicionários ou com a despreocupação de quem tem certeza do mundo.

Sabia do Universo como a serpente sabe do céu. Sentia-se vivo, e até olhara para as estrelas duas ou três vezes, mas nem uma vez desejou alcançá-las; seu deserto de sal o fazia feliz.

Sim, jamais conheci alguém mais feliz. Tinha uns olhos honestos e um doce sorriso infantil. Deu a si mesmo para mulheres, filhos, amigos; jogou futebol, ardeu debaixo do sol, e talvez até tenha corrido o mundo. Riu e chorou deveras, ergueu taças e engoliu derrotas; sempre sonhou em visitar um lugar qualquer. Beijou, trabalhou, cantou, se desesperou e dançou. Ah, como dançou! A trilha sonora já conhecemos. Cara-caramba-cara-caraô. Belíssima música

Poeminha verde

No escuro do quarto
Piscou o vaga-lume.
Voou, sobrevoou, revoou.

Iluminado pela fraca luzinha,
O menino esboçou um sorriso;
Nos seus olhos viam-se lágrimas.

Lágrimas verdes
O inseto era a única luz que havia.
Lá fora não tinha lua
E a janela estava fechada.

O menino esboçou seu sorriso
Também verde como o vaga-lume.
Este se aproximou e piscou outra vez
Tão perto que lhe beijou a testa.

Se sorria também, não se sabe;
O certo é que sabia beijar as testas de meninos tristes.

As lágrimas verdes desceram pelo rosto verde,
E o menino, já todo verde,
Quis perguntar ao vaga-lume
Algo de que não sabemos.

Talvez nem ele soubesse;
O certo é que o vaga-lume apagou
E a escuridão voltou.

quarta-feira, janeiro 11, 2006

Biológico

Partiu. Como no perfeito instante antes da combustão de um fósforo ou de uma cantada de pneus, aquilo subiu-me da ponta – da exata ponta – do terceiro dedo do pé direito. Detalhe inesquecivelmente insignificante.

Sim, aquilo; para tal coisa não posso oferecer mais do que um pronome demonstrativo. Subiu, nitidamente, por artérias e nervos, passando por algumas membranas e cartilagens. E logo tomou minha perna uma biológica sensação de plenitude. Eu já não tinha perna; tinha aquilo.

Não foi além; parou por ali e... Sumiu. Silêncio. Contudo, o pequeno hiato só permitiu que eu tomasse um gole de ar e dois “tiques” do relógio; o indefinível logo tomou-me de assalto, pelas costas. Ah, o silêncio! Mera ação diversiva.

Baixara a guarda, de fato, e a punhalada pegou-me de surpresa. Adaga romântica, que nada; foi uma seringa na décima vértebra. A agulha – de uma temperatura indecifrável – injetou-me um quê de inverter o sangue. Engoli em seco. Quase caí para a direita – detalhes sonoros...

Tomadas por aquilo, minhas células vibraram, ferveram, se desencontraram. Eu era todo caos. Cambaleei novamente, e senti, pela primeira vez no mês, o sol da manhã. Olhei para o céu e depois para mim; vi que amava. Amava?

sexta-feira, janeiro 06, 2006

Pressa

Já tiveste a senhora uma pressa às avessas? Pressa... Aquela ânsia de movimentar-se largo e veloz enquanto se espera um tropeço do tempo. Não, não é dessa que estou falando. Falo daquela de quase querer dormir enquanto o tempo se consome. Pressa elástica, com cheiro de borracha. É a pressa do preguiçoso, não do trabalhador. Em vez de segurar o relógio, empurrar os ponteiros; acordar no dia seguinte e aterrorizar-se com a idéia de que apenas um dia passou. Já tiveste, senhora, uma pressa dessas?

Aposto que sim. Sei que já desejaste saltar cinco anos no tempo. Tenho certeza de que ao menos uma vez te apressaste para abandonar o vazio de um amor perdido. Não para tapar o buraco, mas para ser coberta por ele. Dormir lá embaixo, isolada do céu e do vento, até renascer eras depois, assim como semente mal plantada. É, querida senhora, cada uma de tuas rugas deixa transparecer os anos em que te anulaste, ansiosa por um não-sei-o-quê milagroso.

Mas bem sei que o milagre não veio. A dor permanece, e a pressa aumenta a cada dia. Cinco já não bastam; agora queres que em uma noite passem dez anos, até que o sofrimento desista. Amanhã pedirás por 15, 20, 30... Até que não sobrem mais anos.

Até que não sobrem mais anos. Tens medo, eu sei. É que todas as pressas levam ao mesmo caminho. Umas resistem, e se desesperam para segurar os ponteiros. Outras – como a senhora – arrastam-se pela estrada, acompanhando de longe seus próprios cortejos fúnebres. Embora reconheçam seus rostos nos caixões, não hesitam em continuar; entoam cânticos aflitos e esperançosos. Mas o milagre não vem.

O que levarás, senhora, desta vida que ora te interpela? O que levarás, além do xale de luto e dois ou três sorrisos esmaecidos? Algo mais do que aquela meia dúzia de cartas nunca escritas? Quatro beijos frios? Um porta-retratos roubado?

Ah, senhora, que triste inventário terás de fazer! Trancada no quarto, nos últimos momentos, irás saborear a glória ida e apodrecida. E então, finalmente, apressado ou não, o tempo baterá à porta. Será chegada a hora de pagar os juros de anos e anos dessa estranha e insistente pressa. A moeda? Tristeza, saudade, solidão e, principalmente, uma insuportável sensação de arrependimento.