sexta-feira, maio 19, 2006

Paisagens para se olhar sozinho

Sentado no rochedo; despenhadeiro. Daqueles de comercial de cigarro. Céu tão cinza que é quase noite. Vento forte, frio, com umas gotículas de água. Mar lá embaixo, até o horizonte? Talvez. A paisagem é clichê, mas o mar é insubstituível. O mar transmuta-se em tudo o que o céu mandar; muda de cor que nem camaleão. Olhar pra ele é quase que nem olhar pra dentro, né não? Uma massa informe de algo que dizem que é água, revolto, tudo-menos-azul, hipnótico. Mas ainda assim dizível, ao contrário da gente. Quisera eu ser um mar por dentro.

Caminho por uma planície esquisita. Amarela, laranja; pó. O céu é azul, mas não conta. É só pó, terra, pedra. Nada passa muito do vermelho, do alaranjado. Até o verde do cacto incidental é meio não-verde; aquele pior verde de todos, quase preto. Caminho com um sol amigo, tranqüilo, não queima muito. Está fresco. Mas quem disse que o frescor é alento pra alguma coisa? O horizonte continua na sua vermelhidão, e dá dois passos para cada passo meu.

Autoretrato. Filme vagabundo, máquina descartável. Fotógrafo bêbado e inábil. Ambiente escuro. Rosto oleoso, flash entorpecente. Veja, não há como fugir do fracasso. E não sorria, pois decerto há feijão – ou couve – entre os seus dentes. Essas coisas mecânicas e tecnológicas são implacáveis. Gosto delas.


Pôr-do-sol visto entre prédios. Nada mais deprimente. Só não é pior do que o visto das avenidas largas. Aqueles que você tem que baixar o pára-sol para poder continuar dirigindo. Vê se pode? Uma coisa tão bonita num lugar tão errado.

O garoto corre pela viela. Uma daquelas do Rio Antigo, onde ainda passam carruagens e senhores de monóculo e relógios de bolso. Devia ser um tempo em que diziam “São XV horas”, em vez de “São 15 horas”. O rapaz corre, meio sujo nas bochechas, porque brincou bastante. A viela é estreita, a cidade é quente e os feirantes têm bafo, mas tudo tem um colorido e uma harmonia quase pictóricas. O garoto corre, está atrasado para a partida de bola de gude. Estudar pra quê? Namorar que nada. O rapaz só corre pela cidade suja, e só o que ouve é o tilintar das bolinhas no bolso.

Cansaço. Cama desarrumada, persianas meio fechadas – Meio-dia! –, um copo d’água pela metade ao pé da cama. Luz amarelada, paredes sujas de mosquitos mortos há décadas. Fossilizados, como o rapaz que espreguiça. Meio-dia. Levanta, e vai viver sua meia-vida.

Um comentário:

meiavida disse...

Brilhante texto.
Parabéns