terça-feira, junho 21, 2005

Negócios

- Hmm, será que é por aqui mesmo?
Fazia muito tempo que o Diabo não subia até o Paraíso; sua memória já não era a mesma desde que ele inventou de fundar uma igreja própria e ir gabar-se dela para Deus. Contudo, o caminho estava certo, e, esperto como ele só, Lúcifer entrou novamente pelo velho atalho construído eras atrás. Ele odiava ter que passar por São Pedro; "aquele velho babão", murmurava enquanto subia a lodosa escadaria até a morada do Senhor.
- Lúcifer. Para que viestes a Mim? Não quero ouvir vossas estapafúrdias idéias hoje; estou com dor de cabeça.
- Que nada, Jeová! Venho a negócios... – O Diabo trazia aquele inconfundível sorriso de malícia que ele tão bem ensinara aos homens.
- Ora, essa é boa! E Eu lá trato de negócios convosco?
- Como não, se o acordo Vos é extremamente vantajoso?
- Ah, é? O bondoso demônio veio correndo oferecer-Me benefícios sem conta? – O sorriso irônico que ora se desenhava no canto da boca do Senhor também fora invenção de seu anjo caído, mas Ele gostara tanto que acabou adotando-o para si.
- Por que não? As práticas mercantis têm me ocupado o tempo; na Terra não precisam mais de mim.
- E desde quando Lúcifer conhece as artes do comércio?
- Ah, sim. Recebi há algum tempo no Inferno um libanês, alma avaríssima, que me ensinou algumas coisas. Em troca eu lhe aliviaria um pouco os tormentos. Pechincha vai, barganha vem, e o safado hoje está no Purgatório. Sim, fui logrado; mas aprendi muito.
- Então viestes lograr-Me também?
"Droga!", pensou o Diabo. "Deveria ter passado mais tempo com o libanês".
- Er... Claro que não. Por acaso árabes artimanhas podem vencer a sua onisciência?
- Por que não vais direto ao assunto? Está quase na hora da novela.
- Ah, sim, claro. Venho oferecer-Vos sessenta e cinco mil almas condenadas. E não é tudo o que tenho em estoque; esse é apenas o pacote promocional. Fiz um estudo de marketing, veja: é o nosso folder.
- Que bonito esses anjinhos dourados na moldura desse... Folder, não é?
- Sim, sim! Tenho uma excelente equipe de comunicação visual e publicidade. Os melhores do mercado.
- Estou impressionado.
- E ainda não vistes nada! Como sabeis, beleza não põe mesa, então de nada adianta um belo folder se a oferta não for de qualidade.
- Sessenta e cinco mil almas... "Começai a pagar daqui a 3.800 anos"?
- Não é espetacular? Além disso, se assinardes esse plano promocional, tereis 40% de desconto nos cinco próximos pacotes; pagos no cartão de crédito.
- Bem, até que é...
- É divino, eu diria! Com a vossa licença, é claro.
- Mas quem são essas almas?
- Ora, Senhor! Qual a diferença? Não são todos Vossos filhos?
- São, mas...
- Pois então! Informai-me o número do seu cartão de crédito, identidade, CPF... Não, peraí: Deus tem CPF ou CNPJ?
- Hmm, não sei não. Gabriel Me mandou um e-mail ontem alertando contra esse tipo de negócio, fácil demais.
- Tendes e-mail? Que maravilha! Então também podeis efetuar o pagamento pela internet, no site de qualquer banco multinacional da Terra; as sedes dessas instituições estão todas no Inferno.
- A novela está começando...
- Assinai aqui então, e ide ver a novela. Eu não vi ontem. O que aconteceu?
- Caio Roberto finalmente descobriu que é irmão de Beatriz.
- Bom, já estava mais do que na hora.
- É, mas eu achei desnecessário mostrarem aquelas cenas incestuosas; mesmo que inconscientemente, eles...
- Assinai, Senhor, assinai! Eu também quero ver esse capítulo.
- Está bem, Lúcifer. Eu assino. Mas, se Me enrolardes, entregardes uma alminha a menos, ou com defeito, vós sofrereis a Minha terrível ira.
- Que assim seja.
- Pronto. Ide; aproveitai que entraram os comerciais agora.
- Não vos arrependereis. Adeus.
Dessa vez o Diabo fez questão de sair pelo portão da frente. Puxou as barbas de São Pedro, roubou a corneta de um querubim e chutou a canela de um ancião que ali chegava. Ele não podia estar mais feliz.
- Otário! Nem leu o contrato. Bem que o Roberto Marinho me disse: "É só chegar na hora da novela, meu amigo. É só chegar na hora da novela..."

quarta-feira, junho 08, 2005

Privacidade genética

Buiú, o universitário ocioso, conversava alegremente com o Moreira no pátio de sua faculdade, quando F.D., 19, apareceu. Lívida, despenteada, ofegante, ela parecia ter acabado de terminar a corrida de São Silvestre. Não, minto; pela sua aparência, poderíamos dizer - sem medo de errar - que ela não só tinha corrido a maratona, como tinha idealizado, organizado, realizado, e, além disso, construído a pista de corrida com as próprias mãos. Tudo em um só dia, tal era o estado da pobre F.D.

A animada conversa estacou de súbito, e o Moreira, que falava com seu cachimbo na boca, engasgou com a fumaça. Imagino que engasgar com fumaça não seja possível, mas também não é possível que um coronel do exército epiléptico imaginário fume cachimbos, então não apago a frase. Pois sim, o Moreira engasgou com a fumaça; ela ficou atravessada na sua garganta, assim como as duas faixinhas rosas do teste de gravidez que F.D. segurava na mão ficaram atravessadas no seu olhar.

- O que é isso? - perguntou o Buiú. O Moreira tossia.

- Estou grávida. - A pobre F.D. tinha os olhos cheios d'água.

- Grávida? Er... Parabéns?. - Nesse ponto a pobre F.D. desatou a chorar, e o seu pranto formou uma harmonia musical com a tosse do Moreira, produzindo uma grotesca sinfonia. O Buiú, parece, não era muito chegado a música erudita contemporânea, pois logo interrompeu a apresentação com uma voz alterada:

- Você não querendo dizer que...
- Você é o pai, Buiú! Quem mais poderia ser? - A pobre F.D. estava exasperada com a reticência do ficante. Ela esperara um pouco mais de compreensão.

- Eu?! Impossível! Sempre tomei providências para...

- E daí? Aqui está a prova! Veja, duas faixinhas rosas! Positivo! - A conversa começava a chamar um pouco a atenção, pois F.D., se já falava alto normalmente, imagina numa situação dessas.

E o Moreira ainda tossia.

- Ora, bolas! É a prova de que você está grávida! Ou por acaso essas faixinhas formam o meu nome em letras bastão?

O Buiú não deixou de sentir um certo orgulho pela piadinha espirituosa, mas o bom senso, escondido em algum lugar da sua alma, mexeu os pauzinhos para que ele não sorrise e fizesse aquela cara de "Que genial!". F.D. não podia acreditar em tamanha cafajestagem. E o Moreira nem ouviu a piada, pois ainda tossia como um tuberculoso.

- Buiú, eu não acredito. Você, além de se eximir de responsabilidade, ainda está insinuando que eu...

- Eu não estou insinuando coisíssima nenhuma. Todo mundo sabe. E depois, não somos nem namorados, então qual o problema?

- Então tá Buiú. - A raiva de F.D. agora se misturava com um pouquinho de embaraço. Além da tosse do Moreira, poderia-se ouvir alguns risinhos zombeteiros. - O teste de DNA vai dizer se eu estou certa ou não.
- Não vai não.

- Como?

- Não vai não. - O Buiú sacudia firmemente a cabeça, enfatizando bastante as palavras. Enquanto isso, batia forte nas costas do Moreira, que ainda não parara com o acesso de tosse. - Me recuso a fazer esse teste. É um absurdo! - Ele agora estava de pé, e gesticulava muito. - Esse teste é uma violação da minha privacidade genética. Imagine se eu vou deixar as minhas adeninas e guaninas à mostra. De jeito nenhum!

E o Buiú não parou de falar por um bom tempo. Exaltado, esbravejou contra a medicina, a sociedade, o Estado e a Igreja. Meteu até Gilles Deleuze no meio, repetindo mil vezes que esse teste era a Sociedade de Controle por excelência. Ele falou tanto, e estava tão alterado, que nem percebeu o Moreira se tremelicando todo no chão, no meio de outro ataque. E a pobre F.D. ficou lá, de olhos arregalados e boca aberta. "Quem é esse tal de Deleuze? Um ginecologista?", se perguntava a coitada.