quarta-feira, junho 08, 2005

Privacidade genética

Buiú, o universitário ocioso, conversava alegremente com o Moreira no pátio de sua faculdade, quando F.D., 19, apareceu. Lívida, despenteada, ofegante, ela parecia ter acabado de terminar a corrida de São Silvestre. Não, minto; pela sua aparência, poderíamos dizer - sem medo de errar - que ela não só tinha corrido a maratona, como tinha idealizado, organizado, realizado, e, além disso, construído a pista de corrida com as próprias mãos. Tudo em um só dia, tal era o estado da pobre F.D.

A animada conversa estacou de súbito, e o Moreira, que falava com seu cachimbo na boca, engasgou com a fumaça. Imagino que engasgar com fumaça não seja possível, mas também não é possível que um coronel do exército epiléptico imaginário fume cachimbos, então não apago a frase. Pois sim, o Moreira engasgou com a fumaça; ela ficou atravessada na sua garganta, assim como as duas faixinhas rosas do teste de gravidez que F.D. segurava na mão ficaram atravessadas no seu olhar.

- O que é isso? - perguntou o Buiú. O Moreira tossia.

- Estou grávida. - A pobre F.D. tinha os olhos cheios d'água.

- Grávida? Er... Parabéns?. - Nesse ponto a pobre F.D. desatou a chorar, e o seu pranto formou uma harmonia musical com a tosse do Moreira, produzindo uma grotesca sinfonia. O Buiú, parece, não era muito chegado a música erudita contemporânea, pois logo interrompeu a apresentação com uma voz alterada:

- Você não querendo dizer que...
- Você é o pai, Buiú! Quem mais poderia ser? - A pobre F.D. estava exasperada com a reticência do ficante. Ela esperara um pouco mais de compreensão.

- Eu?! Impossível! Sempre tomei providências para...

- E daí? Aqui está a prova! Veja, duas faixinhas rosas! Positivo! - A conversa começava a chamar um pouco a atenção, pois F.D., se já falava alto normalmente, imagina numa situação dessas.

E o Moreira ainda tossia.

- Ora, bolas! É a prova de que você está grávida! Ou por acaso essas faixinhas formam o meu nome em letras bastão?

O Buiú não deixou de sentir um certo orgulho pela piadinha espirituosa, mas o bom senso, escondido em algum lugar da sua alma, mexeu os pauzinhos para que ele não sorrise e fizesse aquela cara de "Que genial!". F.D. não podia acreditar em tamanha cafajestagem. E o Moreira nem ouviu a piada, pois ainda tossia como um tuberculoso.

- Buiú, eu não acredito. Você, além de se eximir de responsabilidade, ainda está insinuando que eu...

- Eu não estou insinuando coisíssima nenhuma. Todo mundo sabe. E depois, não somos nem namorados, então qual o problema?

- Então tá Buiú. - A raiva de F.D. agora se misturava com um pouquinho de embaraço. Além da tosse do Moreira, poderia-se ouvir alguns risinhos zombeteiros. - O teste de DNA vai dizer se eu estou certa ou não.
- Não vai não.

- Como?

- Não vai não. - O Buiú sacudia firmemente a cabeça, enfatizando bastante as palavras. Enquanto isso, batia forte nas costas do Moreira, que ainda não parara com o acesso de tosse. - Me recuso a fazer esse teste. É um absurdo! - Ele agora estava de pé, e gesticulava muito. - Esse teste é uma violação da minha privacidade genética. Imagine se eu vou deixar as minhas adeninas e guaninas à mostra. De jeito nenhum!

E o Buiú não parou de falar por um bom tempo. Exaltado, esbravejou contra a medicina, a sociedade, o Estado e a Igreja. Meteu até Gilles Deleuze no meio, repetindo mil vezes que esse teste era a Sociedade de Controle por excelência. Ele falou tanto, e estava tão alterado, que nem percebeu o Moreira se tremelicando todo no chão, no meio de outro ataque. E a pobre F.D. ficou lá, de olhos arregalados e boca aberta. "Quem é esse tal de Deleuze? Um ginecologista?", se perguntava a coitada.

2 comentários:

Anna Carolina disse...

É possível engasgar com qualquer coisa. Inclusive com a piada infame do buiú.

Anônimo disse...

Acho que este é o meu post favorito. Amei. De verdade. Só uma coisinha: P... Bernardo! Deixa a garota falar no volume que ela quiser!!! Seu chato!!!!!!! Que preconceito bobo...