sábado, março 04, 2006

A volta pra casa

Saudei o pardalzinho na esquina da minha rua. Cada mancha escura nos muros das casas! Do que são feitas? Umidade, talvez. Mas, lá dentro; acho é que surgem da vida de sem-mais-querer dos suburbanos. Eu via.

É que a gente mais percebe a tristeza do mundo quando está demais feliz. Pardalzinho me saudou de volta. Ê, pardalzinho bonito! Somos nós dois no topo do mundo, e esse povo com manchas nos muros... Aquele dia, se eu quisesse, te juro que voava igual um pardal. Era só estalar os dedos e pensar nela, e lá ia eu, voando de pouquinho em pouquinho, um galho aqui, um poste ali – pra não cansar – e voltava. Porque pássaro é isso aí; voa porque é leve de alegre.

Não se estranhe com o meu dizer as coisas assim, meio solto. Mas assim que é a vida da gente. Eu narro aqui uma descida de rua – da esquina até a minha casa; enquanto desço, a minha vida toda revolve em si mesma, dentro da minha cabeça, em menos de 200 metros. Como pode? Ah, se pode! Penso no pardalzinho, na prova de geografia da 7ª série e até na batata grande que vi outro dia no mercado. É tudo assim, espalhado, que nem lixo na rua depois da Comlurb passar.

Mas principalmente eu pensava era nela. Pensamento da gente acho que precisa de algo que junte tudo e dê sentido. Porque senão a gente acaba até morrendo, imagino. E era ela que agregava todo o meu sentir e pensar, e não tinha prova da escola de toda série que fosse que não tinha ela no meio. É isso aí. Fragmento é só ilusão. Na verdade está tudo ligado, perfeito sedimentado em coerência. Isso eu vi depois que o pardalzinho voou. E tinha as manchas no muros; só tinha tristeza nelas porque tinha eu no topo do mundo.

Eita, mas que isso era parágrafo pra fechar tudo e explicar a maneira de contar desrabiolada. Mas já veio, então aí fica, na quarta posição. Aí eu já descia, passava pela frente da casa do velho que nunca saía da porta. Nunca tinha dado bom dia praquele velho, que sempre pareceu olhar pra mim com cara de vô. Ê, vô! Nunca tira o pijama, ele. Parece que acordou de um pesadelo e veio encontrar a juventude na porta, batendo. Pesadelo real; ele era desremediadamente velho mesmo.

E eu jovem. Eu amante e amado, voltava do céu. Passei pelo vô, não dei bom dia não. Três passos atrás eu teria saudado, que nem com o pardalzinho. Engraçado os ânimos da gente; mudam com dois metros de caminhada. Eu já pensava nela de novo, e no beijo roubado no meio do jardim. E o beijo fechou o dia, e fechou minha vida: ali eu podia morrer satisfeito. Sabe quando a gente se sente em casa? Eu me sentia no céu. E o céu é a casa de todo mundo.

Uma vez eu vi Deus no céu, te juro. Não lembro se era verdade sonhada ou acordada, mas o que é certo é que era Deus, e que ele era cor de abóbora; uma fumacinha assim, meio Fanta Laranja. E aí eu não lembro mais nada. Sei que falou comigo, me deu missão, me xingou, contou piada, sei lá. Mas ele falou, e agora, a 50 metros da casa, lembrei que ele falava era dela, e do beijo no jardim. Lembrei, quer dizer, meio na cara-de-pau. Lembrança é sempre fragmento, e sempre mentirosa. Porque, note, recordação é pensamento como qualquer outro, e – veja a explicação que está lá, na quarta posição – pensamento de ser humano só ganha sentido por outro pensamento. Bicho pode até pensar diferente. Mas homem é assim.

Então eu era isso? Tudo o que vivi não tinha sido nada – monte de pedacinho voando à toa – até que chegasse um anjo que me deixasse roubar um beijo no jardim? Acredito que sim, e não tenho vergonha não. Tem gente que passa a vida toda que nem fugindo da chuva: de cabeça abaixada, correndo, com medo de juntar seus caquinhos de viver. E tem gente que não roubou beijo no jardim, e junta seus fragmentos num sem-mais-querer suburbano. Dá mancha nos muros. Mas eu não. Cheguei em casa, recém-pintada. Pardalzinho me esperava no portão. Ê, pardalzinho bonito!

3 comentários:

Anônimo disse...

adorei isso: "tem gnt que passa a vida toda que nem fugindo da chuva: de cabeça abaixada, correndo, com medo de juntar seus caquinhos de viver".

Mas blog é assim mesmo "ascenção-queda-ascenção"...o meu tb já viveu dias melhores.
bjos

Anônimo disse...

em tempo, uma correção da ANALFABÉLICA: ascensão é com S...

Anônimo disse...

tudo exposto sem muito sentido visível, mas que serve exatamente para retratar a confusão dos nossos pensamentos, que vêm às vezes sem muita coerência, sem muita ordem, mas possuindo uma unicidade própria.
a sensação que me deu em ler seu texto, é que poderia continuar lendo até não poder mais. bastante suave!
é como uma caminhada de volta pra casa: quando nos damos conta, chegamos ao fim.