sexta-feira, outubro 13, 2006

Perfil imaginário I

Desfazia a mala quando o tabuleiro - como sempre mal arrumado - esparramou dois cavalos brancos e um bispo negro. Lá fora chovia o céu do mundo inteiro, e lá dentro apenas um quarto de hotel. Ocupado pelo ser mais desorganizado do mundo.

Jamais vira trovoadas e relâmpagos tão constantes quanto esses. Achava que era coisa de filme; umas duas vezes sonhou presenciar tais tempestades. Agora nem lembra disso, e trata de recolher as peças de madeira, em cima da cama milimetricamente arrumada. Cama de hotel tem cheiro de vida nova.

Ele mesmo as fazia. Entalhes calmos e medidos, e os oblíquos bispos tomavam forma; A franqueza dos negociantes de carro de Duque de Caxias (não conheço nenhum, mas sempre os imaginei muito diretos), e as tinha nas mãos: quatro torres. Esculpia as rainhas com uma sensualidade autista, de assustar psiquiatra; mas talvez isso seja exagero, coisa da cabeça de quem escreve. Quem esculpe só o faz com gosto, sem perversão.

Era assim um hobby, uma mania, uma marca pessoal. Chamava a cada hora de uma coisa diferente. Deus, já se referira a isso como seu "pequeno ajuste de vida"! Fosse como fosse, ele devia ter dezenas de jogos diferentes de xadrez, espalhados por hotéis em todo canto. Alguns eram testemunhas da criatividade humana: vikings sanguinários e de barbas tortas, soldados normandos estrábicos, espartanos orgulhosos em suas capas vermelhas, com alguns dedos faltando. Outros são cópias exatas da uniformidade moderna. Sempre se perguntara por que os bispos têm aquele sorriso invertido na cabeça. Na dúvida e nos momentos mais mornos, fazia-os iguaizinhos aos das lojas.

É, dezenas. Dezenas de exércitos perdidos e espalhados por cada canto da sua fuga, das suas novas vidas novas. Viciara-se no cheiro dos hotéis. Mas não era um nômade qualquer. Ele não simplesmente partia, com sua malinha preta esgarçada e seu andar inclinado, assoviando um choro antigo. Deixava seus soldados imperfeitos ao apagar a luz; um pouco tristonho, é verdade, mas lá deixava seus homenzinhos de madeira, como um tributo a mais uma vida deixada em poucos dias. Perguntava-se se estes choravam ao vê-lo partir. Não sabia; jamais abrira a mesma porta duas vezes.

Um comentário:

Anônimo disse...

"Cama de hotel tem cheiro de vida nova."
Depende do hotel. A não ser que tudo bem vida nova cheirar a mofo e poeira, quando, por descuido, escolhe-se por sorteio qualquer hotel do catálogo.