quinta-feira, abril 13, 2006

À Noite e Eu

Essa noite eu não durmo não. O que é o sono perto da imensidão do mundo? Essa noite, a falsa quietude da cidade pulsa nas minhas têmporas: tum, tum tum; é quase uma dor de cabeça. Olhe pela janela, leitor: o silêncio da noite carioca é um convite à insônia. Me imagino morcego, voando sobre os telhados do Rio de Janeiro; ou Sydney, Havana, Riad: os morcegos são os mesmos.

As cores das luzes da cidade sempre fascinaram esse morcego aqui. Os raios amarelos das lâmpadas de mercúrio, os vermelhos das dos freios e o verde das fluorescentes: todas elas, refletidas na carroceria dos carros, me fazem ainda mais morcego. Sobrevôo o branco esverdeado da iluminação de um posto de gasolina, e ponho-me a pensar: tentativa de frustrar a escuridão? Que nada. Todas as luzes são um brinde, uma coroação à Noite. Enfeitam-na com frios adornos. Silenciosos, porque luz não faz barulho. E aí o silêncio nos convida a sorrir pra dentro, aquele sorriso tão negro quanto a própria noite. Sorriso negro sim, só nosso. Daqueles que não se compartilham e é bom assim. Se você nunca sorriu assim, vá fazer outra coisa: esse texto é para os gourmets da solidão noturna.

Tum, tum, tum. Deixo-me vestir de negro e finjo que o mundo dorme, para que ninguém me veja e eu seja o senhor de mim mesmo. Vôo, não olho pro céu; é pra cidade que me atraio; mergulho numa avenida qualquer. Vazia, conforme eu previra – ou comandara. Empoleirado em um velho outdoor, divirto-me com o sinal vermelho, verde, amarelo. Nenhum carro passa, nem vai passar, porque eu disse que não. Só quem passa é o vento, levando três ou quatro arrepios de espinha.

A brisa da noite carrega também papéis – escritos, impressos, pintados... Essas coisas diurnas. Em pequenos redemoinhos, eles dobram uma esquina próxima. O vento é bom pra passar essas coisas rápidas pela nossa vida. Logo somem.

Ali perto, um som de ônibus parando. Ou bem longe. Nessas horas escuras as distâncias enlouquecem. Som mesmo, mas não quebra o silêncio; é concessão minha nesse teatro de solidão. Em algum lugar, o ônibus parou e chiou. Mas é lugar nenhum. Em lugares nenhuns é que os ônibus param nessas horas tão madrugadas. Só me asseguram de quanto estou longe de tudo. O motorista fantasmagórico espera, impassível, o sinal abrir. Amarelo, vermelho, verde... Há que se dar um mínimo de verossimilhança às nossas imaginações.

Levanto vôo de novo. É dos telhados que realmente gosto. Imagine poder subir 100 metros acima de uma metrópole e gritar a todos pulmões? Há delícia maior? Pois esse morcego pode tudo. Brado sobre a cidade teatralmente adormecida. Obviamente, ninguém desperta. O Rio de noite é só eco. Meu sorriso negro alarga-se; vôo em direção ao mar.

Tão alto e macio quanto o céu é o mar noturno. E eu sei de onde vem o mar. É tantas vezes a noite caindo; de novo, de novo. O mar é o acúmulo de todas as noites que já existiram na Terra. É isso que nos conta aquele jeitão escuro, a superfície áspera e aquele cheiro salgado. E é para ele que me dirijo agora; de morcego para golfinho, me deixo livre no ar – cair é melhor do que mergulhar. O mar me aceita, e eu me deito no seu colo indefinido. Ali, no meio do nada, nada se enxerga, nada se ouve; ali, quase nada se sente, a não ser as têmporas pulsando o velho “tum, tum, tum”. Ali se sorri pra dentro. É... O mar, sem dúvida, é filho da Noite.

Onde que vai parar essa viagem? Oras, a resposta é óbvia: na aurora. Inevitavelmente, o sol vai raiar. Em minutos, talvez; horas, tomara. Vai ser tempo de voltar pra casa empapado de maresia, e com um olhar meio torto. Nada mais triste do que o café-da-manhã depois de uma experiência dessas. O cheiro de pão nessas horas me enoja; aquele cheiro tão morno quanto a noite foi fria, que só serve pra me meter goela abaixo as frases “À noite, dorme-se. Nada de poesia. Está na hora de trabalhar.”. Como sim, tomo até leite junto. Levanto e vou viver o dia. Mas saio desconfiado, achando que o dia é que foi feito pra ser dormido.

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