terça-feira, outubro 02, 2007

Paixão de ficção

O grande problema dos personagens fascinantes é que eles não existem. As almas estonteantes, as inteligências admiráveis e ofegantes só nos fazem lamentar que a vida seja tão imprevisível. Pois na ficção tudo está no script. Lorde Henry Wotton nunca é pego de surpresa nas suas palestras corruptoras, pois já sabe exatamente todas as reações de seus inventados interlocutores. O Lobo Larsen não tem de lidar com ponderações inopinadas do "hóspede" de sua embarcação, pois tanto um como outro são frutos de uma mente em devaneio criativo.

Não acredito na Clarice Lispector quando ela diz que não sabe o rumo que suas histórias vão tomar quando começa a escrever. Sim, elas vão se desenvolvendo à medida em que as palavras são pintadas, mas isso não significa surpresa, por mais que a mente sonhadora do escritor goste de pensar que o personagem tem vida própria.

Não, a Hermínia do Lobo da Estepe é irresistível e suas palavras são mágicas só porque ela é mimada pelo autor. A amante tcheca de Franz - Sofia? Seu nome agora me escapa - é indomável pois todos os outros personagens do Kundera já foram domados por ele. Brás Cubas é tão irônico consigo mesmo porque não existe, e sua própria morte é uma farsa. E não acho que eu poderia conhecer um jagunço com a poesia simples de Riobaldo.

Poderia continuar com uma infinidade de personagens cujo espírito e dom da palavra são estelares. São todos uma grande gargalhada frente à mediocridade humana. Porque afinal, convenhamos, somos todos mentes medianas, com delírios de genialidade. Mesmo que a genialidade não seja nossa, e sim uma admiração pelo brilhantismo alheio, ainda assim ela é delirante.

Isso tudo pode ser muito triste. Porque jamais - e isso reconheço que é puro pessimismo - irei entrar em um bar alemão com pensamentos suicidas e encontrar uma formosa e misteriosa moça que, com sua perspicácia irretocável, irá soprar a cor de volta à minha vida. Nunca nunca uma mulher terá uma resposta na ponta da língua para cada pergunta minha, a ponto de me impressionar o espírito a ferro em brasa.

Ou será que essa mulher existe? Ela seria a perdição de qualquer homem na face da Terra. Ela e tantas outras personagens femininas da vasta imaginação humana. Nunca conheci ninguém de carne e osso que as superasse em mistério e brilhantismo. Já perdi a conta de mulheres que descobri apaixonantes com um simples cruzar de olhos, mas não é a mesma coisa. Nunca nenhuma delas me fez temer pela perdição da minha própria alma. Nem acho que eu jamais terei esse efeito sobre ninguém. Efeito esse que um mero espantalho descrito em caracteres impressos pode conseguir com um estalar de dedos do seu teatrinho inventado.

Ora, paciência. Enquanto isso vamos sonhando com o roçar nos nossos joelhos da saia de uma Hermínia ao levantar-se; com a beleza indizível de uma Helena; com a radiante sensibilidade aprisionada e incompreendida de mil putas solitárias e desprezadas da nossa literatura. É só o que podemos fazer, esticar os braços para alcançá-las e só encontrar o frio papel impresso nas gráficas desse mundo afora.

2 comentários:

Stephanie disse...

até porque, me parece que estas mulheres são feitas de recortes: os olhos de uma, a sagacidade de outra, a curva do pescoço de uma terceira.

Fora toda aquela leve dose de idealização que envolve um objeto de desejo. Quantas dessas personagens foram inventadas pelo anseio do escritor em encontrar uma mulher assim?

Anônimo disse...

Que bom que nunca ninguém vai encontrar o fascínio de uma personagem em uma pessoa de carne e osso. Isso significa que a ficção estará sempre nos rodeando, sempre presente, pela necessidade de amparar a nossa falta de brilho na vida - ainda algo para nos salvar.

Eu tenho uma pergunta, pode me responder pelo Orkut (ou pode não me responde, é uma opção também - mas aí você vai me matar de curiosidade e isso seria muito ruim): por que você criou um blog? Você já escrevia antes do blog?