domingo, outubro 07, 2007
A navalha e a carne
Não, a lâmina que corta e a carne que sofre não são diferentes. Não é que elas não saibam uma da outra, e - céus - não atribuam crueldade ao pobre fio da lâmina que violenta a inocência da pele rasgada. Porque a navalha sabe bem o que é a dor, e já foi carne, mole, quente e cheia de sangue a espirrar; num golpe de vento, endureceu, afiou-se e refletiu - metálica - o céu tempestuoso. E a carne, pobre despedaçada e mutilada, sabe bem o que é ferir, pois já foi tão fria e tenaz quanto qualquer aço; caiu a chuva, amoleceu, encheu-se de fluidos e nervos que gritam. O sangue sempre a escorrer pela calçada, nunca novidade para ninguém. E ainda assim a navalha corta e a carne esperneia. Serão tão estúpidas a ponto de esquecerem tudo o que já sofreram? O universo é uma crueldade só, fazer coisas que não sabem o que são... E se houvesse uma navalha de carne, e uma carne de frio metal? Por que a insistência eterna num carrossel sangrento e oco, repetitivo, emburrecedor? Onde estão as raposas desse mundo, e a experiência que faz a prudência? Vergonha! A carne devia ter vergonha do sangue que verte, assim como a navalha se embaraça de sua ponta pungente. Pede perdão pelos músculos partidos, desgraçada! Recolhe teus restos mutilados, e ai de ti se deixares o cheiro da tua pusilanimidade no ar! Limpa o palco, que os ares já mudam, e logo será a tua vez de cortar e desculpar-se. E tu, navalha infeliz? Arranca-te do rosto essa expressão de horror e culpa, como se nada soubesses do mundo! Enxuga o sangue que já coagula em tuas falsas faces de facínora e corre. Corre, sem olhar para os lados, e aproveita a tua metalicidade enquanto é tempo. Andem! Saiam ambas da minha frente, que me enojam!
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário