Texto escrito num sábado, 14 de junho de 2003. Não sei por que ressuscito isso agora. Nem cortei o cabelo.
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Crônicas do subúrbio
Bela tarde de quinta-feira, no pacato bairro da Praça Seca, Zona Oeste carioca. A cena se desenrola dentro de um barbeiro. Sim, barbeiro. Para se chamar assim, o estabelecimento deve contar com todos os seguintes elementos: funcionários de meia-idade, casados e barrigudos; clientes exclusivamente masculinos, apesar da plaquinha de "unissex"; nenhum cabeleireiro gay ou mesmo efeminado; nenhuma "Contigo", "Tititi" ou "Cláudia" nos sofazinhos de espera.
Portanto, era num barbeiro em que eu cortava o cabelo nesse dia. No dia anterior, o Cruzeiro havia massacrado o Flamengo e, como é de praxe em dia depois de jogo e em locais com muitos homens juntos, todos discutiam futebol. Os flamenguistas xingavam todo o plantel rubro-negro e suas respectivas mães, os vascaínos e tricolores se regozijavam com a revolta dos urubus, fazendo periódicas piadinhas, e os botafoguenses... Bem, os botafoguenses ficavam calados porque não tinham muito o que dizer. Enquanto rolava esse agradável mas redundante papo, entra - coisa incrível - uma figura feminina no lugar: a esposa de um dos funcionários. É como gota de chuva no Saara, ou poeira em alto-mar. Mas o mundo não acaba, e o assunto pára para as protocolares saudações.
A mulher, casualmente, dá a notícia: "Ontem mataram quatro traficantes; neguinho tá mandando fechar tudo!". "Quem te falou isso?", pergunta o marido dela, com a tesoura na mão. "O pessoal lá do açougue. Todo mundo já sabe. Parece que na Barão (Rua Barão) já tá tudo fechado. Já-já mandam fechar aqui também.". "Ih! Então o Zé da Padaria já fechou...". Até então quieto, o barbeiro encarregado do meu cabelo comenta: "Merda! Só faltava essa! Se morre o presidente, ninguém fecha nada; mas morre esses "gente boa" aí e acontece isso.".
Depois de uma breve discussão - também redundante - sobre como a violência estava horrível na cidade, todos, como que combinados, calaram, meio que refletindo, gravemente, sobre a vida. Foi um momento solene, emocionante. Todos aqueles homens suburbanamente simples, por um momento, uniram-se na mesma contemplação.
Depois de 1 minuto - ou 10 segundos, ou até 10 minutos, quem sabe -, um deles quebrou o silêncio: "Tá vendo? Se o mengão tivesse ganho não tinha acontecido isso!". Todos caíram na gargalhada, esqueceram as preocupações e o salão voltou ao normal, dessa vez xingando o André Bahia, que "chutou aquela bola pra escanteio, e depois saiu o gol. Crioulo burro!"
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quarta-feira, fevereiro 07, 2007
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Um comentário:
muito boa!
achei interessante vc ter colocado que não sabia ao certo se o silêncio foi quebrado depois de 1 minuto, 10 segundos ou 10 minutos de contemplação. uma incerteza de quem estava presente [mesmo que em imaginação]. ou vc foi realmente cortar o cabelo?
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