Carta sem selo ou remetente, um pouco amassada. Nunca recebia cartas, a Marina, a não ser contas e folhetos de candidatos sorridentes na época de eleição. Sorriu bem pequenininho, como sempre fazia (sorriso só pra ela). Seu rosto pálido de papel encharcado ficou assim o de uma moça abraçada. Bonita, até. Nem parecia tão solitária.
Marina: pequenininha. Cabelos louros, mas tão escuros que davam desânimo. Pêlos negros nos bracinhos finos e alvos. Olhar de quem cansou de esperar, olheiras de quem cansou de esquecer. Narizinho fino, pele branco-azulada. Jeito de boneca de pano, dessas que não falam porque são de pano. Marina tinha um adjetivo só pra ela: cândida.
Tinha as unhas tão bem arrumadas, a Marina. Gostava de roê-las, mas parece que sempre estavam em ordem, inteirinhas e grandefeitinhas. Devorava as da mão direita, enquanto trazia, na canhota, o envelope pra dentro de casa. O papagaio Cujo, cujo nome provava que Marina não era desprovida de espírito, saudava: Hoje tem feira! ... Ô dona! Me leva pro céu, mas não bagunça!.
A Vó cochilava na cadeirinha de balanço. Sonhava seus noventa e seis anos vividos, e era por isso que dormia muito. Gostava muito da neta, fazia-lhe casaquinhos azuis em cada setembro.
Marina foi pisando o assoalho – tacos velhos quase sem verniz -, arrastava um pouco o pé, olhava pra carta e entrava no seu quarto assim. Adorava a sua penteadeira. Sentou em frente a ela e rasgou a pontinha do envelope com o canino. Pôs os dedos magros de maria-branquinha no buraco e abriu o resto. Tinha um papel, só. De caderno de folha amarelada. Escrita com caneta de ponta grossa, azul, que afunda no papel, sulca com tinta. Letra carinhosa.
A carta era uma confeitaria de doçuras e afetos. Era quindim, cocada, quebra-queixo, suspiro, mariola, queijadinha, pé-de-moleque, bom-bom de frutinhas azedas. As letras miúdas davam beijos na bochecha quieta da Marina. Descobria que gostava do cheiro de tinta de caneta, gostava do cheiro do papel amarelado, gostava de receber cartas. Marina não sorria; era toda olhos arregalados de felicidade.
Marina começou a pensar na resposta, mas assim sem remetente era que não dava pra escrever de volta. Uma pena, pois ela tinha tudo tão bonito na sua penteadeira, coisas de escrever de menina. Pensamentos. Já lia mais e mais que a carta. Brincava de ver estrelas através do teto. E escrevia de volta, nem que o vento só que fosse levar a carta certinha pra quem devia de recebê-la. Toda-todinha alegria.
Deu a hora do remédio da Vó. Levantou veloz da cama, correu pra sala pra acordar a velhinha com muitos abraços, mas não sem antes se olhar demorado no espelho. Não sorria de novo; o melhor riso da Marina era mesmo com os olhos. Deixou a carta guardada solta, sem terminar de ler, em cima da cama. Vento de cima que traz tristeza: logo ia ler no finzinho os mil beijos escritos pra uma certa Alice.
segunda-feira, fevereiro 26, 2007
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5 comentários:
delicadíssimo esse texto.
muito, muito bom!
=)
muito bom!
Beijos malvados.
Firula é uma palavra bacana. Vou procurar sua origem.
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lindo, lindo... que delícia seria a vida ganhássemos uma confeitaria de doçuras e afeto a cada carta...
Mariana, no entanto, aguarda cartinha ansiosa com remetente e destinatário certo.
Beijos
Ainda não consigo me decidir sobre esse final... hehehehe
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