- Mas Alice, eu já disse que não sou mitômano!
Vocês podem muito bem imaginar o alvoroço que essa exclamação causou naquela família interiorana. Especialmente se eu disser que se trata da primeira frase pronunciada pelo pequeno Expedito de Jesus dos Santos, o Dito.
A mãe soltou algo como um grunhido. Teria preferido gritar de prazer e guardar o momento num cantinho especial do coração – como todos fazem nessas ocasiões. Só que o pensamento humano não é tão veloz quanto gostamos de crer; no ínfimo tempo que separa o ouvir do entender, seu cérebro já mobilizava o corpo para aquela explosão de alegria que repete incessantemente “Ele falou! Vocês ouviram? Ele falou!”. Mas então caiu em si. “Ele falou! Vocês ouviram isso? Ele falou!” mais “Que p. é essa?!”, dividido por três e noves fora, dá “algo como um grunhido”, como está dito no início do parágrafo.
Mas o dito do parágrafo anterior não é importante. O importante é o dito do Dito, que olhava com a cara de nada, típica de bebês cínicos como ele. Depois de alguns instantes de silêncio, a parentada toda se aproximou, curiosa. Uma bela de uma coincidência, o Dito falar pela primeira vez no seu próprio aniversário. Mais alguns instantes de silêncio. Parece que esperavam que o moleque se repetisse, ou pior, continuasse com um discurso de 14 horas. Mas só o que o Dito fez foi chorar um pouco, porque o Tio Né chegou perto demais. Ele sempre chorava perto do Tio Né.
- Isso é coisa do Cramunhão, né... – sentenciou, sem gravidade na voz, o Tio Né. Na verdade, ele se chamava Joaquim. Mas a maioria das pessoas só o conhecia pelo apelido, marca registrada do seu conformismo fatalista.
- Arre! Não fala besteira, mano, que o Demo num entra nessa casa! – retrucou o pai - Que foi que ele disse mesmo, mulher?
- “Mas Alice, eu já falei que não sou ‘mitomo’” – respondeu na frente um primo enxerido.
- Foi “disse”.
- Hein?
- “Disse”, e não “falei”.
Como ninguém entendeu nada desse breve diálogo, a conversa começou a se fragmentar dentro da sala. A família Jesus dos Santos inteira discutia o que o Dito tinha dito. O burburinho tratava não só da reconstituição da frase original, mas de variadas outras questões: “Quem será Alice?”, se perguntavam alguns; outros planejavam como fazer o Dito falar de novo; algumas tias beatas tentavam recordar se havia uma passagem bíblica semelhante; três ou quatro agregados foram buscar um dicionário na casa do padre; o que queriam mesmo era buscar o padre, influenciados pelo que dissera o Tio Né.
A noite foi passando e a conversa também. Os agregados voltaram de mãos abanando; o padre viajara. Alguém teve a bem-vinda idéia de jantar. Já que não conseguiam entender, queriam ao menos esquecer. Mas o mal-estar permanecia, como uma grande bola de chumbo, no meio da sala.
A situação já ficava insuportável quando um tio distante, com fama de instruído, observou que o caso não era tão extraordinário assim, afinal. O importante não é a primeira frase do bebê, mas a primeira palavra, que, convenhamos, não foi nada extraordinária. Ouviram-se murmúrios de aprovação. A credibilidade do tio, somada ao cansaço de todos, acalmou a família toda. Ou melhor, quase toda. O Dito começara a chorar.
sexta-feira, abril 06, 2007
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Um comentário:
Digno de ser publicado na Piauí! heheehe
divertidíssimo!
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