Edinho achou aquilo uma coincidência pra lá de mórbida. Morreria de infarto antes dos trinta, como sempre brincara com os amigos e familiares. Não que acreditasse realmente nisso; gostava era de ouvir os "cruzes!" e acompanhar as persignações, e saber-se querido. Pois agora era como se seu coração dissesse que ele nunca gostara nem um pouco daquela brincadeira de mau gosto. Onde já se viu, alardear por aí que vou te deixar na mão? E tome dor nos braços! Esse tipo de piadinha só porque sabe que eu jamais te abandonaria, né? Então toma aquele desespero!
Estava lá Edinho, sozinho em sua poltrona favorita, de onde gostava de assistir aos filmes do Sergio Leone. "Esses italianos fizeram bangue-bangue melhor que os americanos, vê se pode". Vê se pode. Começara a sentir-se mal justamente na hora do duelo final entre o Bom, o Mau e o Feio. Aquela tensão toda, os olhos impávidos do Clint Eastwood, os olhos suados do Eli Wallach, os olhos de raposa do Lee Van Cleef. E os olhos pequenos e arfantes do Edinho. Close up nesses olhos, meu povo, como o diretor italiano fazia. O Edinho está agonizante.
Sim, se você me perguntar, eu admito que a vida do Edinho passou voando diante dos seus olhos. Mas ele não foi tão sortudo quanto nosso amigo Brás Cubas, que devia ter um karma importante o suficiente para que uma entidade primordial lhe mostrasse tudo o que houve, há e haverá com o Homem. Viu três ou quatro esporros que levara quando criança, uns cinqüenta gols do Fluminense, e intensas, muitas e variadas cenas de amor com sua esposa. De algumas ele nem participara. Estranho.
Estava sozinho em casa, leitor, então pare de querer chamar a atenção de alguém para socorrer nosso pobre amigo. A mulher está na casa de um amigo, estudando. Os filhos, sabe Deus onde. Pepe, o cachorro, não levanta nem para comer. A coisa está complicada.
E aqui a história pode tomar dois rumos diferentes. Eu posso aproveitar a morte - tão querida para as nossas literatices - e descrever os momentos finais do tricolor fã de faroeste. Quem sabe não saem até algumas reflexões de valor disso tudo? O Edinho é, afinal, um ser humano bastante singular em suas idéias e filosofias.
Mas o que eu acho - e o Edinho concordaria comigo - é que a história vai pegar uma carona no balão da fantasia, e salvar o nosso amigo. Pois basta alguns pequenos golpes do meu dedo nesse teclado para eu avisar ao Edinho que, na verdade, o que houve foi que o coração dele não está falhando. Só resolveu parar de trabalhar de graça. Não, esquece essa história de tecido muscular liso ou outras babosieras biológicas. Se quisesse viver, Edinho teria que se esforçar. Literalmente. Greve do miocárdio.
"Bate outra vez / Com esperanças o meu coração". Não pôde deixar de lembrar do Cartola, quando se viu salvo. Implicara sempre com ele, por parecer muito com o Ray Charles. Mas agora sentia uma espécie de gratidão. Daquelas sem sentido, pois o mangueirense de nariz de couve-flor nada teve a ver com isso. O ser humano não tem mesmo muita razão no sangue.
O que diabos estava acontecendo? Edinho sabia sim se surpreender com as coisas, e refletiu por alguns minutos. Logo desistiu. "Se eu for pensar muito na vida / Morro cedo, amor". Foi assaltado pelos versos do Nelson Cavaquinho. Ah, desse ele gostava mais. Parecia o Mestre Yoda, e o Mestre Yoda é muito mais legal que o Ray Charles.
Edinho foi vivendo muito bem com o seu coração assalariado, sindicalizado, CLTista. Recebia em ATP's, queima de energia, contração muscular voluntária; só não podia se aposentar. É claro que nem tudo era um mar de rosas. Todo mundo sabe que o Edinho sempre foi sedentário. E por causa disso teve princípio de infarto umas quinze vezes nas primeiras semanas. Sem contar que era difícil bater o coração e fazer outras tarefas ao mesmo tempo; quando se distraía, quase tinha um piripaque. Mas coordenar a intensidade e freqüência das sístoles e diástoles, isso que era o mais difícil. Os ajustes tinham que ser feitos a cada batida, de acordo com as necessidades emocionais ou físicas do corpo. Sexo, era complicado. Ficou uns quatro meses sem encostar na mulher. E ela, estudava na casa do amigo.
Mas aos poucos tudo foi se acertando. "O ser humano. Sensacional", ele dizia. Adaptou-se com perfeição, e gostava de dizer que era o melhor controlador de freqüência cardíaca do mundo. Virou um maratonista coronariano. Assoviava e chupava manga. Conhecia seu corpo como o roteiro de "Era uma vez no oeste": de cor e salteado. Aos poucos, foi tomando as rédeas do sistema imunológico, da digestão, do processamento de informação do cérebro. Doenças, não as tinha. Afinal, quando é que um corpo humano e seus linfócitos vão cercar bactérias e vírus com táticas militares? Edinho aposentara o autopiloto, e estava bem melhor assim. Já escreveram que o nariz serve para que cada um olhe para o seu próprio. Fundamental na constituição do ser humano, uma porta pra si mesmo. Pro Edinho isso era fichinha. O Edinho era-se todo transparente.
Mas aí um dia ele morreu. Bateu com o carro, coitado.
sexta-feira, agosto 24, 2007
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2 comentários:
Finalmente a idéia no papel!
muito bom!
escrever é ser um pouco deus né? deus de merda, mas deus.
criar e descriar é um belo exercício.
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