terça-feira, março 21, 2006

A alguém

Sou uma mulher imprecisa. É melhor avisar-te logo, caro senhor, para evitar que rasgues essa carta já na quinta ou sexta linha. Sim, sou uma mulher indefinida, vaga, ligeiramente aquosa. Portanto, tenha calma, e faz o que quiseres com isto. Não é importante que ouças, mas é essencial para a minha sanidade que eu diga.

Serei direta: amo-te. Soube ontem, por volta das oito e meia, na terceira dose de vodca. Dizem que o álcool nos enevoa o juízo; eu digo que ele nos dá um quê de pitonisas. Falo por nós, mulheres. Os homens estão longe de suas fronteiras; sempre capitais. Ademais, eles resistem melhor à embriaguez. Já nós, mulheres, estamos sempre no limite de nossas imprecisões, e qualquer pequeno empurrão nos faz cair. No abismo de nós mesmas.

E eu caí de cabeça. Mas não digo que tenha sido uma epifania. Estas são místicas, levemente divinas. Eu despenquei foi num poço de entranhas e lama. Lá, eu vi todos os homens que passaram: pela minha cama, pela minha rua; pelo meu ventre, pelo meu pensamento. Amei todos eles. Alguns com fogo, outros com sonho. Às vezes o amor morava no sangue; outras nos fios de meu cabelo. Como vês, amei demais.

Entretanto – não se assuste, lindo rapaz -, jamais amei como a você. Sim, você. E mesmo quando o meu coração e o meu sangue – ou os insensíveis fios de cabelo – eram dos outros, eles eram também seus. Pois eu o amo desde o primeiro dia em que não o vi. Você, lindo rapaz; tu, caro senhor, que talvez...

“Talvez”, que nada! Meu abismo me diz que você não existe. Mas sou uma mulher imprecisa. E acho que espalhei um pouco de ti por todos os homens de minha vida. Você, que não tem olhos, boca ou livro predileto. Tu, que és tão impreciso quanto eu mesma; sem nem mesmo um pronome pessoal definido; aquoso como meu abismo; curvo como um espelho retorcido. Um espelho...

Digo, já pela terceira vez, que sou uma mulher imprecisa. Como um espelho. Podes imaginar, caro senhor, um espelho impreciso? Assim o são todos os espelhos de mulher. Assim é você, meu lindo rapaz. Um espelho tão vago que eu nem me reconheço mais. Espatifei você. Espalhei teus cacos, antes mesmo de me ver lá dentro. E só agora, com a ressaca da bebedeira de ontem, é que começo a ver. Um pedaço aqui, outro acolá; alguns nos meus – sempre insensíveis – fios de cabelo; muitos outros na corrente sangüínea. Terei como juntá-los? Mas não, cacos não se juntam. Cacos se jogam fora, se esquecem; pelo menos até o próximo porre.

Obs: Bernardo não mudou – nem pretende – mudar de sexo.

segunda-feira, março 13, 2006

Pequena parábola - Parte II

... o Remela foi brincar na casa do Pedrinho. O Remela... Bem, o Remela era o grandalhão da vila, e, como todo grandalhão das histórias, sua burrice era do tamanho da sua força, que era impressionante. Admirável também era a quantidade de secreções que saíam de seus olhos, nariz e ouvidos, e o que ele fazia com elas. As garotas não gostavam nem um pouco, mas quem liga pra elas?

Aproveitando-se da “lentidão” do vizinho, Pedrinho logo convenceu-o da inferioridade tecnológica de seu exército, que, apesar de contar até com o último modelo de helicóptero de combate, não tinha o “plus a mais” proporcionado pelos engenheiros químicos do inimigo. A tropa do Remela foi trucidada rapidamente. Turbinada pelo “combustível atômico” Aerolin, a cavalaria blindada de Pedrinho agiu com uma mobilidade de dar inveja a Rommel. Logo Remela foi cercado, e sua superioridade aérea não pôde fazer nada contra as rajadas de Rinossoro da artilharia antiaérea do adversário. Uma vitória decisiva.

Atônito, o Remela olhava para o campo de batalha. Perto de um dos pés da mesa de centro, jazia o todo-poderoso helicóptero, que ganhara no último Natal; não houve sobreviventes. Enquanto isso, no acampamento adversário, os médicos aplicavam comprimidos de Claritin D nos ferimentos dos soldados, que logo ficavam de pé. Assombrado, o Remela perguntou: “Onde você arranjou isso tudo?”. “Segredo de Estado, Remela”, Pedrinho respondeu, sorrindo. “O que eu não daria pra ter um arsenal desses também...”, suspirou o Remela, enquanto guardava, sem o menor cuidado, seu helicóptero de volta na caixa. “!”, acendeu-se a luzinha na cabeça do Pedrinho, que teve sua primeira grande idéia. “Você é um gênio, Remela!”.

domingo, março 05, 2006

AAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!

Que foi? Nunca teve vontade de gritar não?

sábado, março 04, 2006

A volta pra casa

Saudei o pardalzinho na esquina da minha rua. Cada mancha escura nos muros das casas! Do que são feitas? Umidade, talvez. Mas, lá dentro; acho é que surgem da vida de sem-mais-querer dos suburbanos. Eu via.

É que a gente mais percebe a tristeza do mundo quando está demais feliz. Pardalzinho me saudou de volta. Ê, pardalzinho bonito! Somos nós dois no topo do mundo, e esse povo com manchas nos muros... Aquele dia, se eu quisesse, te juro que voava igual um pardal. Era só estalar os dedos e pensar nela, e lá ia eu, voando de pouquinho em pouquinho, um galho aqui, um poste ali – pra não cansar – e voltava. Porque pássaro é isso aí; voa porque é leve de alegre.

Não se estranhe com o meu dizer as coisas assim, meio solto. Mas assim que é a vida da gente. Eu narro aqui uma descida de rua – da esquina até a minha casa; enquanto desço, a minha vida toda revolve em si mesma, dentro da minha cabeça, em menos de 200 metros. Como pode? Ah, se pode! Penso no pardalzinho, na prova de geografia da 7ª série e até na batata grande que vi outro dia no mercado. É tudo assim, espalhado, que nem lixo na rua depois da Comlurb passar.

Mas principalmente eu pensava era nela. Pensamento da gente acho que precisa de algo que junte tudo e dê sentido. Porque senão a gente acaba até morrendo, imagino. E era ela que agregava todo o meu sentir e pensar, e não tinha prova da escola de toda série que fosse que não tinha ela no meio. É isso aí. Fragmento é só ilusão. Na verdade está tudo ligado, perfeito sedimentado em coerência. Isso eu vi depois que o pardalzinho voou. E tinha as manchas no muros; só tinha tristeza nelas porque tinha eu no topo do mundo.

Eita, mas que isso era parágrafo pra fechar tudo e explicar a maneira de contar desrabiolada. Mas já veio, então aí fica, na quarta posição. Aí eu já descia, passava pela frente da casa do velho que nunca saía da porta. Nunca tinha dado bom dia praquele velho, que sempre pareceu olhar pra mim com cara de vô. Ê, vô! Nunca tira o pijama, ele. Parece que acordou de um pesadelo e veio encontrar a juventude na porta, batendo. Pesadelo real; ele era desremediadamente velho mesmo.

E eu jovem. Eu amante e amado, voltava do céu. Passei pelo vô, não dei bom dia não. Três passos atrás eu teria saudado, que nem com o pardalzinho. Engraçado os ânimos da gente; mudam com dois metros de caminhada. Eu já pensava nela de novo, e no beijo roubado no meio do jardim. E o beijo fechou o dia, e fechou minha vida: ali eu podia morrer satisfeito. Sabe quando a gente se sente em casa? Eu me sentia no céu. E o céu é a casa de todo mundo.

Uma vez eu vi Deus no céu, te juro. Não lembro se era verdade sonhada ou acordada, mas o que é certo é que era Deus, e que ele era cor de abóbora; uma fumacinha assim, meio Fanta Laranja. E aí eu não lembro mais nada. Sei que falou comigo, me deu missão, me xingou, contou piada, sei lá. Mas ele falou, e agora, a 50 metros da casa, lembrei que ele falava era dela, e do beijo no jardim. Lembrei, quer dizer, meio na cara-de-pau. Lembrança é sempre fragmento, e sempre mentirosa. Porque, note, recordação é pensamento como qualquer outro, e – veja a explicação que está lá, na quarta posição – pensamento de ser humano só ganha sentido por outro pensamento. Bicho pode até pensar diferente. Mas homem é assim.

Então eu era isso? Tudo o que vivi não tinha sido nada – monte de pedacinho voando à toa – até que chegasse um anjo que me deixasse roubar um beijo no jardim? Acredito que sim, e não tenho vergonha não. Tem gente que passa a vida toda que nem fugindo da chuva: de cabeça abaixada, correndo, com medo de juntar seus caquinhos de viver. E tem gente que não roubou beijo no jardim, e junta seus fragmentos num sem-mais-querer suburbano. Dá mancha nos muros. Mas eu não. Cheguei em casa, recém-pintada. Pardalzinho me esperava no portão. Ê, pardalzinho bonito!

quinta-feira, março 02, 2006

Pequena Parábola - Parte I

Enxotado, com as roupas puídas, arruinado, Pedrinho chorava que dava dó. Mas sua mãe só iria voltar bem mais tarde, e ele, na falta de colo, tinha que se contentar em chorar na sua cama com colcha do Batman. Como havia chegado a esse ponto? Ele não se conformava.

***

Tudo começou quando, um dia, a correspondência chegou, e sua mãe não estava em casa. Entre contas de telefone, água, luz e anúncios de promoções no mercado da esquina, lá estava uma caixinha de papelão. Hermeticamente embrulhada num plástico transparente, endereçada à mãe e sem a menor pista de seu conteúdo, era demais para resistir.

Primeiro cuidadosamente, tentando rasgar com o canino as bordas do plástico, depois, já bem impaciente, arrancando tudo que o impedia de abrir a caixinha, Pedrinho olhou seu conteúdo. Ah! Então era assim que mamãe arranjava tanto remédio!

Aqui cabe um parêntese. Ei-lo: (A mãe de Pedrinho era médica e, como tal, recebia regularmente uma certa quantidade de amostras grátis.)

Embalagens verdes, amarelas, faixas vermelhas; comprimidos, conta-gotas, colheres de plástico. Tinha de tudo dentro da caixinha; Pedrinho ganhara na loteria. Suas brincadeiras haviam recebido um “plus a mais”, como dizia sua irmã.

Logo seus bonecos, em suas intermináveis guerras sanguinárias, tinham que lidar com um arsenal extenso de armas químicas, perigosíssimas para a vida na Terra. Se aquele tubo de Eritromicina caísse em mãos erradas... E quantas vidas foram salvas porque o médico do pelotão tinha uma ampola de Buscopam nas mãos? Como podemos ver, a única conseqüência do achado do Pedrinho havia sido o avanço tecnológico de suas tropas combatentes. Até que um dia...